quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Diário de Caminhada - ETAPA VII: Trancoso - Ponte do Abade

“Da nossa casa a Santiago de Compostela”,

Etapa VII: Trancoso - Ponte do Abade
30 de junho de 2013, domingo

Caminhantes: Benvinda Monteiro, Carlos Matos, Fernando Gaspar, Fernando Micaelo, Inserme, Jaime Matos, Joaquim Branco, Luisa, Paula Marques, Sãozita Branco, Zé Manel Machado. No apoio, Piedade.


Sinopse:

Inicio em Trancoso 7:30 horas
Distância percorrida: 23,2 km
Tempo total de caminhada: 6:15 horas
Tempo a andar: 5:17 horas
Tempo parado: 58 minutos
Velocidade média: 4,4 km/h
Altitude máxima: 822 metros aos 5Km de percurso
Subida acumulada 279  Metros
Descida acumulada 531 Metros

Povoados e locais de referência ao longo do percurso: 
Trancoso, Sintrão, Montes, Vila Novinha, Palhais, Benvende, Peroferreiro, Lezírias, Ponte do Abade, rio Távora.

Acumulado:
Caminho: 184,2 Km
Bacias hidrográficas: Tejo, Zêzere, Mondego, Douro.
Distritos: Castelo Branco, Guarda, Viseu.
Concelhos: Castelo Branco, Fundão, Covilhã, Belmonte, Manteigas, Guarda, Celorico da Beira, Trancoso, Aguiar da Beira, Sernancelhe.

Fonte: GPS de Joaquim Branco
(ver track aqui


O caminho são caminhos. Nas primeiras 3 etapas procurámos seguir o percurso a que se poderá chamar “rota da cardosa”, desde Castelo Branco até Belmonte, a qual já vinha desde o Tejo e cujo nome pode estar associado ao primitivo nome da colina à volta da qual a cidade albicastrense se desenvolveu. As 3 etapas seguintes que nos trouxeram até Trancoso incluem-se na que é conhecida por “via da Estrela”, a qual fazia parte da rota que ligava Mérida a Braga passando pela serra da Estrela. Não estando estes troços marcados, houve sempre a preocupação em respeitarmos os percursos do “Caminho”, designadamente, as transposições das principais linhas de água nas velhas pontes romanas, muito por mérito das pesquisas e do trabalho do nosso camarada Xquim Branco.

A partir de Trancoso, entramos no caminho de Torres. De acordo com as pesquisas realizadas, trata-se do caminho percorrido na primeira metade do século XVIII por D. Diego de Torres Vilarroel, um salamantino ilustre, da Universidade de Salamanca, que peregrinou a Santiago através do caminho português interior, com passagem por Trancoso e daqui para Sernancelhe, Lamego, Amarante, Guimarães, Braga e Ponte de Lima onde entronca com o “caminho central” que conduz a Compostela. Recentemente, toda esta rota foi marcada aproveitando o trabalho de Torres. A partir de Trancoso, só teremos de estar atentos às setas amarelas, sem abdicar, à cautela, do GPS do Xquim Branco.

Em plena rotunda junto à porta norte da muralha de Trancoso saudámos a primeira seta, eram precisamente 07:30 da manhã e, fizemo-nos então ao caminho de Torres. Nos pontos mais elevados conseguíamos perceber a orografia acidentada da região, preparando-nos mentalmente para os troços mais inclinados. O primeiro, e mais íngreme da jornada, apareceu logo ao terceiro quilómetro passada a aldeia de Sintrão atingindo-se a altitude máxima da etapa a 822 metros. A paisagem soava a inóspita, quase “selvagem”, submetendo-nos à exposição solar em longos e estreitos trilhos ladeados por grossas e altas giestas, compensando pela alternância com a frescura do pinhal frondoso, em percursos onde a intervenção humana deve ser rara, exceptuando, talvez, as placas indicadoras das reservas de caça. Durante cerca de duas horas não se viu uma horta, só pinheiros, carvalhos, giestas e barrocos. Já com os santos a ajudar rodeámos as povoações de Montes e Vila Novinha até encontrarmos o rio Távora que nos surpreendeu com uma serena e pitoresca lagoa, logo aproveitada para breve mas refrescante pausa.



Prosseguiu-se em alcatrão ao longo da floresta, retomando a terra batida à entrada de Palhais, para a aldeia de Benvende. Aqui, alguém se lembrou de perguntar, em jeito de brincadeira, se a terra possuía uma bica a deitar água. O benvendense Daniel Batista, homem a aparentar sessenta e alguns, adiantou-se de imediato avisando que não senhor, a deitar água não, mas a deitar vinho havia na sua adega. Não era produção própria porque o vinho daquela zona não era grande coisa, mas era caseiro comprado em Mêda. A nós soube-nos que nem ginjas. As senhoras optaram por porto caseiro e todos brindámos à saúde do Ti Daniel enaltecendo a sua hospitalidade.


Há uma teoria, na área das ciências do território, que sustenta que a hospitalidade cresce de sul para norte. O nosso projecto será uma boa oportunidade para a testar empiricamente. A investigação realizada até agora, privilegiando a técnica da observação participante, tende a reforça-la, mas, prometemos estar atentos e seremos implacáveis a declará-la falsa tal como o faria Karl Popper, se formos maltratados uma única vez. Sim, porque todos os cisnes são brancos até que apareça um negro. Por isso, gentes do norte, cuidai-vos em nos cuidar!

Foi o que fizeram as gentes de Lezírias, anexa da freguesia de Souto, concelho de Aguiar da Beira, que se preparavam para um almoço de confraternização na antiga escola primária, envolvendo toda a comunidade de pouco mais de 30 pessoas. Aquele que parecia o “chefe” mandou que nos servissem bebidas frescas determinando com alguma vivacidade “aqui ninguém paga nada!”. Aceitámos educadamente acompanhando com a entrada localmente muito apreciada que prima pela simplicidade: cebola regada com vinho tinto e temperada com duas areias de sal. Ninguém nos soube satisfazer a curiosidade de saber porque é que chamavam àquilo …galinha.



Ganhámos alento para a última meia hora da etapa, marcada para a Ponte do Abade, onde chegámos às 13:45, uma hora boa para almoço. Era preciso um sítio fresco para estender os farnéis e Jaime encontrou-o rapidamente numa pequena esplanada de um café junto à estrada, que também era pensão e mercearia, propriedade do Sr Seixeiro que acumulava ainda com as funções de taxista da aldeia. Não fomos autorizados, porque o Sr Seixeiro, sem saber da nossa investigação acerca da hospitalidade, quis contribuir para o reforço da teoria e ofereceu-nos uma sala já equipada com uma mesa comprida. E quando a Paula perguntou pela casa de banho, foi a de casa que ele abriu. Por ele ficámos a saber alguns pormenores interessantes sobre a povoação, a começar pela origem da ponte, edificada, segundo ele e a lenda, para facilitar o trabalho do abade na sua missão pastoral junto da população do outro lado do rio; e também para permitir a regularidade das suas visitas a uma amiga do peito que lá residia.

A ponte propriamente dita, apresenta características romano-góticas e localiza-se na confluência de dois distritos (Guarda e Viseu), dois concelhos (Aguiar da Beira e Sernancelhe), duas freguesias (Sequeiros e Ponte do Abade), duas dioceses (Viseu e Lamego), duas comarcas (Trancoso e Moimenta da Beira).

Antes da partida de regresso a casa ainda houve tempo para assembleia informal da Confraria para acerto de estratégia. As próximas etapas deverão ser cumpridas em tempo de vindima e levar-nos-ão até Lamego.