terça-feira, 28 de julho de 2015

INSTANTÂNEO XIV

“Podemos não saber a razão porque fazemos o caminho, mas de certeza que temos uma”, decretou um filósofo de mochila às costas. Entre muitas outras, a perspectiva de encontrar gente de outras latitudes e estabelecer conversa, foi (é) uma das mais valorizadas motivações para se fazer o caminho. Isto é absolutamente verdade para estes peregrinos albicastrenses mas sê-lo-á seguramente também para muitos dos que abraçam esta extraordinária aventura de rumar a Santiago.

Não se perde uma oportunidade de interacção com qualquer um ou qualquer uma, velho ou nova, na língua mais a jeito. A entreajuda, essa, é uma obrigação sagrada. Um peregrino está sempre disponível para ajudar outro peregrino. Incondicionalmente. Assim deve ter sido ao longo dos séculos, desde que os druidas celtas se meteram a buscar o fim da terra para aí orarem ao deus sol, continuado na cristianização do movimento desviado para Compostela, partilhado e alimentado tanto por reis como Alfonso II ou a nossa Santa Isabel, como pelo humilde servo da gleba actual.

Zé Manel comunga, por excesso e por defeito, de personalidade e profissional, respectivamente, desse ancestral e verdadeiro espírito de acudir a qualquer um que necessite.

Aconteceu que - algures entre Pontevedra e Caldas del Rey - foi chamado a acudir a duas vistosas jovens que nele anteviram a imagem de um qualquer messias salvador. Parece que os dentes metálicos do fecho-eclair da mochila tinham cariado e não corriam no cursor. Parece que elas vinham pela arte e engenho de Zé Manel na esperança que ele encaixasse adequadamente os dentes do fecho-eclair da mochila.

Não há qualquer evidência que Zé Manel tenha entendido o que as duas beldades pretendiam dele, considerando a rudimentaridade do seu inglês. A verdade é que, Zé Manel, num tom entre o meloso e o provocatório, não hesitou:


- Ó meninas… eu tenho tudo o que vós precisais…


sábado, 18 de julho de 2015

Diário de Caminhada - Caminhos do fim da terra - Etapa IV

CAMINHOS DO FIM DA TERRA

Caminhantes:

Anselmo, Benvinda Monteiro, Conceição Pires, Elsa Maia, Fernando Micaelo, Jaime Matos, João Valente, Joaquim Branco, José Manuel Machado, Paula Marques, Raul Maia.


ETAPA IV – Muxía - Fisterra
10/06/2015




Naquele tempo, julgava-se que o cabo Fisterra era a ponta mais ocidental da Europa, o local onde a terra acabava e o mar sem fim começava. Havíamos de ter oportunidade de esclarecer alguns peregrinos desactualizados, e apontar o cabo da Roca como o ponto mais ocidental do continente europeu. Na hora, não houve discernimento para tal, mas teríamos feito um figurão se a esses mesmos peregrinos exibíssemos que em matéria de fim da terra e começo do mar, nós, se calhar melhor que ninguém, também podemos falar d’alto, e ilustrássemos assim (com a devida vénia ao galáctico Camões):

"Já a vista pouco e pouco se desterra
Daqueles pátrios montes que ficavam;
Ficava o caro Tejo, e a fresca serra
De Sintra, e nela os olhos se alongavam.
Ficava-nos também na amada terra
O coração, que as mágoas lá deixavam;
E já depois que toda se escondeu,
Não vimos mais enfim que mar e céu

Até Fisterra, sabiamo-lo, só encontraríamos um local para parar e abastecer: Lires. Pressente-se a proximidade do mar, mas só o veríamos à vista da enorme baía dominada pelo imponente Monte Pindo. O trajecto é agradável, propício a amenizar a fadiga do 4º dia consecutivo de caminhada, sobretudo nos trilhos estreitos bordejados por bastos e verdejantes fetos e ensombreados por frondosos carvalhos e eucaliptos empinados.






A espaços, ocorria o cruzamento com os muitos peregrinos que optaram por realizar o caminho a terminar em Muxía. No mesmo sentido que o nosso, destaque para as 4 jovens japonesas que mereceram a nossa simpatia e admiração, não só porque se exibiam sempre sorridentes como é do seu perfil estereotipado, mas também porque caminhavam há 45 dias seguidos. Depois de todo o caminho francês, ei-las a completar o circuito até Fisterra. Abona a favor, o facto de serem relativamente secas de carne, logo mais leves.






Em Fisterra, localidade, corremos a repor os níveis com duas canecas das grandes de cerveja com limão, mesmo antes de atacarmos o istmo de mais de 3 km até ao promontório sagrado, sabendo que a viagem era de volta atrás.

A literatura antiga convida o peregrino que completa ali o caminho a cumprir a tradição de queimar as botas e a indumentária que usa no momento, bem como a descer o promontório e mergulhar no mar ao por do sol. Autores mais liberais e atrevidos advertem mesmo que o banho no mar deverá ser feito sem qualquer roupa, sustentando a tese de que este banho de limpeza do corpo cansado está associada à limpeza de pecados concedida ao peregrino pelo facto de ter encetado e concluído a peregrinação. E, ainda, no facto trivial e pretensamente coerente de o peregrino não possuir roupas uma vez que as acabara de queimar. Foi cumprida apenas a parte da queima de tshirts usadas na empreitada. De resto, ofereceram-se os peregrinos um breve tempo de relaxe a mirar o tal mar sem fim, desde o tal fim da terra, na tentativa de pressentirem um cheirinho da perspectiva que seria a dos antigos quando ali chegavam e lhes era dado mirar o mar infindável no qual o sol se desvanecia todas as tardes. Aliás, toda a Costa da Morte carrega uma dimensão esotérica e mística, assente em numerosas lendas e cultos antigos, todos eles substituídos no processo de cristianização que se operou sobretudo durante a Idade Média, ou a ele referenciados.



Para além das histórias sobre a Virgem que navegava numa barca de pedra (Muxía), parece que a imagem do Santo Cristo terá dado à praia e originado movimento de grande devoção que ainda hoje perdura; a ira divina terá submergido cidades como Dugium como castigo por os seus mandantes não terem autorizado a sepultura das relíquias santas do apóstolo; na ponta do promontório os fenícios terão erigido um altar ao sol supostamente destruído por Santiago; monte Pindo seria uma espécie de Olimpo dos celtas, etc.

A mais fantástica, todavia, é a que nos leva a olhar para o céu nocturno estrelado e a imaginar aquela enorme mancha composta por biliões de estrelas, a que alguns chamam Via Láctea, mas muitos preferem ver ali a projecção do Caminho de Santiago apontando precisamente para esta Fisterra.





Carregados com a Muxiana e com a Fisterrana, carregados com os sentimentos de mais uma extraordinária experiência, carregados com a vontade de continuar a fazer caminhos, estes, e outros, regressaram estes peregrinos a casa. Satisfeitos. Limpos de todos os pecados.



Post Scriptum

Um pouco à margem do camiño propriamente dito, ainda 3 notas dignas de registo.

A primeira vai para a viagem de autocarro entre Fisterra e Compostela: quase 3 horas. A camioneta da carreira serpenteia por uma série de rias, pára em muitos apeadeiros, inclui transbordo para outra camioneta da carreira e, deixa-nos no terminal compostelano obrigando a mais 20 minutos de caminhada até ao albergue. Ou seja, o peregrino que acabou a sua viagem em Fisterra desde Muxía, foi ao promontório e regressou, quase 40 km palmilhados, ainda leva com 3 horas dentro de uma camioneta antes de tomar um duche, vestir roupa lavadinha e deambular um pouquinho por entre a velha história da velha Compostela.

Chegados à Rua de Preguntório - cá vai a 2ª nota -, já o sol se tinha amagado lá por debaixo de Fisterra, eis que são estes peregrinos informados de que não há duche com água quente, devido a avaria da caldeira. Valeu a motivação militar de alguns, o incentivo de outros, sustentado na tese de que a água fria é boa para os músculos, mas, sobretudo, a necessidade de se voltar a sentir aquela sensação de tapar um corpo lavadinho com roupa lavadinha.

Finalmente, 3ª nota, esta positiva: o reencontro do Xoaquim Branco com o nosso amigo Sergio de Nisa (blogue campus stellae). Foi no Manolo, restaurante habitual, mesmo antes da partida. A justificação desta referência advém do pormenor de que, contou Xoaquim, é a uma conversa em Nisa com Sergio que se deve ir buscar um dos embriões da ideia de se fazer o caminho português desde Castelo Branco. Aliás, Xoaquim e Matos, já por diversas vezes reivindicaram que, na verdade, eles os dois, e só eles, têm o percurso feito desde o Crato até Compostela. Não há muitos com este curriculum.

sábado, 11 de julho de 2015

Diário de Caminhada - Caminhos do fim da terra - Etapa III

CAMINHOS DO FIM DA TERRA

Caminhantes:
Anselmo, Benvinda Monteiro, Conceição Pires, Elsa Maia, Fernando Micaelo, Jaime Matos, João Valente, Joaquim Branco, José Manuel Machado, Paula Marques, Raul Maia.



ETAPA III: Olveiroa - Muxía
09/06/2015






Eram 7 da manhã, já rompido o dia quando abalámos de Olveiroa, convenientemente aconchegados com desayuno de 2 ovos estrelados com bacon. A paisagem é marcada pela profusão de torres eólicas que se multiplicam em todas as cumeadas, aproveitando a força que a aproximação do mar fornece ao vento. Não é propriamente o que se verifica hoje, início de Junho, sol a brilhar em céu azul, temperatura agradável, um quadro de fazer inveja aos habitantes das terras lusitanas, acima e abaixo dos montes hermínios onde parece que troveja. Os rios e ribeiras correm ainda vigorosos mostrando águas límpidas, frias de truta. Logo a seguir ao albergue de Longosa, em Hospital, a bifurcação para Muxía e Fisterra. Seguindo o plano delineado, prosseguimos para a primeira, em direcção a Dumbría.






Paragem técnica em Dumbría junto à igreja de Santa Eulália. A simpática jovem galega que nos franqueou a entrada convenceu-nos da veracidade da fantástica história da trasladação desta igreja para a sua actual jazida, pedra por pedra, no sec XVII, desde algures nas proximidades, sem saber precisar de onde. Para a época, deve ter sido uma operação arqueológica de engenhosa e notável envergadura.

Deduzimos que não estaríamos longe do destino quando o horizonte se nos abriu a mostrar a ría de Camariñas. Bordejando a ria e algumas praias apontámos ao monte Corpiño no sopé do qual se estendia Muxía que nos saudou com uma forte ventania.



Inevitável, mesmo aconselhável, a subida do Monte Corpiño, onde há vários motivos de reportagem. Desde logo, o horizonte onde pontificam, a ria de Camariñas e os contornos daquela a que chamam a Costa da Morte. Depois, a Igreja da Virgem da Barca, cujo interior – riquíssimo - foi quase todo destruído pelo incêndio que terá sido provocado por um raio durante uma tormenta, no dia Natal de 2013. A entrada está vedada ao público, sendo apenas permitido espreitar para constatar que prosseguem as obras de restauro. Impõe-se igualmente, pela sua dimensão, a “Ferida” um enorme bloco de pedra rachado ao meio em forma de greta e que pretende homenagear todos os voluntários que a estas bandas acudiram para minimizar os estragos produzidos pela maré negra que se escapou do petroleiro Prestige afundado junto a esta Costa da Morte em 2002.







Incontornáveis são, claro, as pedras, a dos cadris e a d’abalar. Afiançam-nos todos os escritos que a primeira será a vela e a segunda a barca na qual a virgem navegou para vir incentivar o apóstolo na sua missão evangelizadora. Garantem ainda os sábios escritos que a pedra dos cadris possui fantásticas propriedades como a de curar as doenças dos rins a quem por debaixo dela passar por nove vezes. A pedra d’abalar, por seu turno, mexe-se quando alguém com a alma e o coração puros se coloca em cima dela, mantém-se queda se se tratar de um pecador. À cautela, alguns destes peregrinos não deixaram de experimentar. Surpreendentemente, a pedra não se mexeu com nenhum deles.

Ceia no El Cordobés, gerido por Sergio, cujo avô, adiantou logo, era transmontano. Sugeriu-nos a degustação de gallo, um peixe mais ou menos comum por aquelas bandas. Razoável. Numa bancada, exibia uma colecção de concertinas, prontinhas a tocar por quem tivesse arte e engenho para tal. Ninguém se atreveu. Inserme ainda perguntou por um realejo mas, desafortunadamente, não havia nas redondezas, pelo que foi o próprio Sérgio que agarrou numa das suas concertinas de teclas e nos levou a acompanhar o "menina estás à janela". Na mesa ao lado, aplaudia o valente holandês que degustava deliciado uma travessa de navalheiras com a mulher que naquele dia se lhe tinha juntado, directamente de Amsterdam. Exibiu, orgulhoso, que tinha feito o caminho francês.




Num contraste assinalável com o dia, a noite de Muxía pediu casaquinho. Já no albergue, e porque ainda não era tarde, Micaelo abancou na sala comum a dar uns retoques nos seus sketches. Os ditos, mais a parafernália de lápis, pincéis, guaches, chamaram a atenção de 2 jovens lusitanas curiosas que com bons modos lhe pediram autorização para mirar os seus trabalhos. Ajudado por Inserme e Xoaquim, foi Micaelo alcandorado aos píncaros da genialidade pelas jovens, deslumbradas com a qualidade das obras. Modesto, ia o nosso Mike refreando os elogios, o que, desconfiamos, alimentou ainda mais a admiração das tugas.

Durante a noite, o suspeito do costume decidiu impor-se e exibir o seu estatuto de roncador mor do reino. Faltariam ainda 2 horas para o romper da bela aurora quando o peregrino francês que se acomodava na cama inferior do beliche fez contas de cabeça e terá concluído que, assim como assim, o melhor era sair dali e começar a andar. Agarrou nas suas traquitanas e trocou o concerto roncado pela sonata do vento soprante, e foi andando.




sexta-feira, 3 de julho de 2015

Diário de Caminhada - Caminhos do fim da terra - Etapa II

CAMINHOS DO FIM DA TERRA

Caminhantes:
Anselmo, Benvinda Monteiro, Conceição Pires, Elsa Maia, Fernando Micaelo, Jaime Matos, João Valente, Joaquim Branco, José Manuel Machado, Paula Marques, Raul Maia.


ETAPA II: Negreira – Olveiroa
08/06/2015



A segunda etapa foi cumprida em dia exageradamente quente para o padrão galego, com a temperatura máxima a ultrapassar os 30º. Entretanto, chegavam notícias de trovoada e chuva na nossa terra. 

Logo à saída de Negreira acoplou-se a nós o galego de Léon mas residente em Santiago, Valério Areas, um tagarela, viciado em caminhadas e em tirar selfies com toda a gente. Fez-nos boa companhia enquanto pôde e quis.

A paisagem típica deste canto do noroeste da Galiza é composta por colinas relativamente suaves, contrastantes com os picos pronunciados que se encontram no interior, povoamento disperso, baixo índice de urbanização e de industrialização, bosques de carvalhos robles, castanheiros e o inevitável invasor eucalipto, que bordejam extensas clareiras nas quais predomina a cultura do milho.
















Não se vislumbram poços, não se detectam sistemas de rega, seguramente porque o clima húmido atlântico dominante oferece a esta região precipitação regular e em valores elevados. As vinhas são escassas, na classe das hortícolas só se viam couves, cebolas e feijão, provavelmente porque as restantes são plantadas mais tarde. O que abunda é mesmo a cultura do milho, a maior parte dele recém semeado, acompanhada de outros cereais forrageiros, base da alimentação do principal recurso da região: vacas de leite, muitas vacas. Abundam igualmente grandes reservatórios de silagem em forma de tubos, herdeiros funcionais dos velhos espigueiros, a maior parte construídos em pedra e que em castelhano se diz horréo e em galego cabazo.


Aos olhos agrada a paisagem, sobretudo a miríade de tons de verde dos campos cultivados e da floresta, os ouvidos deleitam-se com as sonatas chilreantes dos passarinhos, o nariz, esse é sacrificado com um constante e incómodo odor a atirar para ácido a bosta de vaca.






Olveiroa, nota-se, já se estruturou para acolher peregrinos: vários albergues, restaurante e esplanada ampla e agradável. Tão agradável como o caldo galego que nos disponibilizou para a janta. A esplanada encheu-se de gente em confraternização, empenhada em entender e fazer-se entender na lingua mais a jeito. O inglês, essa lingua cada vez mais universal impunha-se, mas também se ouvia português, galego, castelhano e francês. Nota mais saliente para o reencontro com 2 belgas bebedores de cerveja que nos garantem que visitaram um pequena aldeia medieval, sem castelo, perto de Lisboa chamada qualquer coisa parecida com ibreianova. Ainda hoje, continuamos a desconhecer a sua localização e nome. Será a Avalon lusitana?

Albergue e restaurante Horreo, aceitáveis.






domingo, 21 de junho de 2015

Diário de Caminhada - Caminhos do fim da terra - Etapa I

CAMINHOS DO FIM DA TERRA

Caminhantes:
Anselmo, Benvinda Monteiro, Conceição Pires, Elsa Maia, Fernando Micaelo, Jaime Matos, João Valente, Joaquim Branco, José Manuel Machado, Paula Marques, Raul Maia.


ETAPA I: Santiago – Negreira, 24,2 Km
07/06/2015


Novo objectivo: palmilhar o troço do camiño mais ancestral, aquele que, supostamente, seria a peregrinação pré cristã até ao “fim da terra”.

Estão razoavelmente identificadas todas as condicionantes que conduziram ao surgimento do movimento peregrinatório a Compostela, e em especial a estas terras de Muxía e Fisterra, quer na dimensão lendária quer histórica. Do saco das lendas saem as histórias que envolvem a barca de pedra, a da Virgem que se lhe apresenta a incentivá-lo à evangelização e a do transporte do seu corpo decapitado até Padrón, as que garantem que a pedra d’Abalar é a barca, e a pedra dos Cadris é a vela onde viajou a virgem; da bolsa da história saem as teorias, verosímeis, da cristianização de locais e ritos pagãos, essencial à difusão e reforço da fé cristã, mas também o aproveitamento político do movimento de expansão do cristianismo face às investidas muçulmanas. Não deve ser por acaso que a sepultura do apóstolo é “descoberta” no seculo IX, vinham os mouros a subir a Península Ibérica a impor outro deus e outra religião. Admissível é igualmente a tese da existência de movimentos pré-cristãos associados à veneração de locais místicos, onde existiam pedras que se moviam, mais pedras com propriedades curativas, mais a percepção do fim da terra, mais o culto ao sol, mais o esoterismo e romantismo que gostamos e precisamos de atribuir às antigas tribos celtas, suevas, etc.

Se calhar, o que nos impeliu a mais uma aventura neste trilho que oficialmente faz parte integrante do camiño vem destas dimensões mística, lendária, histórica, cultural e religiosa (para alguns); também há-de sustentar-se no quadro motivacional de cariz mais individual que advém da oportunidade de melhorar o auto-conhecimento através da introspecção e da interação com os companheiros de jornada, bem como com a multidão de peregrinos que comungam o espírito do camiño; e ainda, deverá inspirar-se naquela sensação algo masoquista de obter satisfação e sentir orgulho inerentes ao sofrimento físico inevitável quando se caminha num território difícil mas belo, para se chegar a um destino que se pressente efectivamente místico.

A estratégia operacional e logística foi previamente delineada e seguiu o modelo já testado e bem sucedido em anteriores jornadas: viagens de ida e volta em minibus alugado, pernoitas em albergues, alimentação em unidades locais. As tropas reuniram-se no terminal rodoviário de Castelo Branco à uma da tarde, às 8 já estávamos a arrumar as mochilas no alberge “o ultimo sello”, ali a 200 metros do Obradoiro, na Rua do Preguntório. Era dia de final europeia mas, curiosamente, à hora do jogo, via-se mais gente a degustar pinchos e Estrella Galicia do que fixados na televisão. A vitória do Barcelona não resultou em euforias com desfiles de carros a apitar, nem manifestações de milhares de adeptos na praça do Obradoiro. Tudo tranquilo.

Dois contactos a registar logo à chegada: a simpática sexagenária do Colorado que connosco partilhou a camarata e que nos informou já ter realizado a viagem a Fisterra resumindo-a num “very nice”; o casal de argentinos que concluíram de bicicleta o caminho francês. Ela jurou-nos que iria passar muito tempo até voltar a montar uma bicicleta. Para a animar, partilhámos com eles uma taça de vinho verde e uma talhada de queijo de ovelha de Alcains sobre um naco de pão da Zebreira, proporcionando-lhes a descoberta de um cheiro e sabor completamente novos. Deu-nos a sensação que ficaram impressionados.

A noite de Santiago ofereceu-nos um excelente aperitivo: vários artistas de rua nas imediações da catedral, a tuna compostelana dava um pequeno concerto nas arcadas do Paço Raxoi mesmo em frente à catedral, mas o que nos fixou foi o arraial que estava armado na praça de S. Martinho, apinhada de gente aos saltos e a acompanhar o trio musical de cinquentões que ia passando em revista reportório dos anos 60 e 70. Naturalmente, a hora de deitar foi significativamente atrasada. Acresceu, que até cerca das 3 da manhã, aos aposentos chegavam nitidamente audíveis as vozes de numerosos noctívagos foliões, a falar, a rir, até a cantar cantigas desconhecidas mas claramente em desafinação. O boicote ao sono consumou-se com os ruídos produzidos pelos motores dos veículos dos serviços de limpeza. Ou seja, em bom português, quando não é do cú, é das calças: o roncador mor Zé Manel presenteou-nos com uma noite aceitável, em contrapartida, tivemos direito a uma noite de insónia forçada por via da movida compostelana. É a vida! Se calhar, é a sina do peregrino.


O toque de alvorada soou logo a seguir e às 6 da manhã já estávamos a passar novamente pela Obradoiro, embicados à Rua das Hortas e a iniciar oficialmente a jornada em direcção a Negreira. Temperatura amena, conversa descontraída e animada até Água Pesada. Aqui, por volta do km 11 inicia-se um trilho de mais de 3 quilómetros onde o esforço para contrariar a gravidade obriga a maior concentração, amenizada pela frescura do frondoso e sombreado bosque de castanheiros e carvalhos, e dos banquinhos para descanso que surgem a intervalos regulares. 


Paragem técnica em Ponte Maceira (sec XIV), num local aprazível na margem esquerda do rio Tambre, logo aproveitado pelos nossos 3 sketchers para o oportuno registo nos cadernos gráficos.









Chegada a Negreira e ao albergue S. José às 2 da tarde, uma hora excelente para se chegar, sobretudo se se pretende passar o resto da tarde a realizar trabalho de campo, utilizando a técnica da observação participante, em descontraído convívio com os autóctones. Na esplanada do restaurante “A Vila”, calhou darmos logo com a portuguesa de Nelas Maria da Conceição casada com o galego Rafael Gonzalez, filho de Maruja. Rafael é comercial de uma empresa de madeiras e mobiliário com unidades em Portugal, designadamente em Nelas, mas fez questão de sublinhar que não foi o interesse comercial que levou a que Maria da Conceição abandonasse a bela vila de Nelas: foi mesmo amor. Na mesa ao lado, a germânica Helga, 65 anos, contou que tinha feito o caminho entre León e Santiago e partilhava agora os nossos trilhos, mas o mais extraordinário que nos confidenciou foi que anda nisto desde 2007, caminhando cerca de 500 quilómetros por ano, tendo já percorrido praticamente todos os caminhos que da Alemanha para cá vêm dar a Compostela.


O trabalho de campo, por exclusiva responsabilidade de Rafael e amigos, prolongou-se quase até às 9 da noite que na Galiza ainda tem a mesma luz que em Portugal. Os temas iam sendo abordados consoante a curiosidade científica de cada um, mantendo-se apenas o acompanhamento privilegiado das Estrella Galícia 1906 Reserva Especial e os pratos de Raxo – lombo de porco cortado em cubos, previamente macerado durante 8 horas, temperado com alho picadinho, salsa muita, oregãos e pitada de pimentão, tudo cozinhado em frigideira com fio de azeite e abundantemente regado com vinho branco. Uma iguaria que todos classificaram de 5 estrelas, ou, se quisermos empregar uma expressão tipicamente galega, estava caralhudo.



segunda-feira, 18 de maio de 2015

FÁTIMA POR OUTROS CAMINHOS - 2015 - ETAPAS III / IV / V

Caminhantes:
Anselmo, Benvinda Monteiro, Carlos Filipe, Carlos Matos, Fernando Gaspar, João Dias, João Salvado, Joaquim Branco, José Luís Rodrigues, José Manuel Machado, Mário, Piedade Gabriel.

SINOPSE:


11/04/2015, sábado
ETAPA III: Proença-a-Nova (SOTIMA) – Vila de Rei, 30 kms, em 10 horas
12/04/2015, domingo
ETAPA IV: Vila de Rei – Alviobeira, 29 kms, em 9 horas
26/04/2015, domingo
ETAPA V: Alviobeira – Fátima, 46 kms, em 12 horas e 40 minutos

ACUMULADO:
Castelo Branco - Fátima: 146 kms
Concelhos: Castelo Branco, Vila Velha de Ródão, Proença-a-Nova, Mação, Vila de Rei, Ferreira do Zêzere, Tomar, Ourém.
Bacias hidrográficas: Ocreza, Tejo, Zêzere, Nabão

(Track completo AQUI)



ETAPA III: Proença-a-Nova (SOTIMA) – Vila de Rei


A etapa III começa em ambiente descontraído, reforçado com os dizeres inscritos na placa colocada 200 metros à frente do cruzamento de acesso à antiga Sotima:  “Centro I.R. Animais Errantes”. Era apontado o sentido da direita e ... foi para a direita que virámos, embrenhando-nos no coração da região a que apropriadamente foi atribuído o nome de Pinhal – o tal pinhal que supostamente terá sido semeado de aeroplano como referido na crónica anterior. Havíamos de constatar, todavia, que há quem ande empenhado em boicotar tal nome, considerando a quantidade de eucaliptais que já se intrometeram.



Nas quase 3 horas que precisámos para atingir Cardigos, nenhuma alma nos “incomodou”, logo a nós que gostamos de ser incomodados. Sempre em terra batida, bordejámos os raros e pequenos lugarejos característicos destas paragens impondo-nos a nós próprios, estoicamente, a privação de parar em todas as capelinhas para “rezar” ao lúpulo e à cevada fermentados. As energias gastas a subir até Cardigos foram repostas com descanso e almoço no Café Central – há sempre um Café Central.













À distância, guiava-nos a ponta fálica da Milriça, convencionalmente o ponto que marca o centro geodésico de Portugal, porque sabíamos que mesmo ao lado, estava Vila de Rei. O Roteiro Turístico recolhido propunha: “ experimente dobrar simetricamente um mapa de Portugal Continental em quatro partes: no ponto de união das dobras encontrará Vila de Rei.” Havemos de experimentar.

Naturalmente, nunca prescindimos de seguir as ordens do nosso estratega Xoaquim Branco que, a cada Alminhas, nos comandava em frente marche, esquerda volver, direita volver, depois de consultar o seu apêndice GPS. Os vestígios do gigantesco incêndio de 2003 que cinzentou quase 80% da área florestal do concelho de Vila de Rei, ainda são perceptíveis, pese embora a mãe natureza, na sua infinita paciência, os venha cuidadosamente apagando. Se assim não fosse, se a mãe natureza não desse uma mãozinha, ficaria comprometido o objectivo dos senhores autarcas que projectaram e mandaram construir a piscina fluvial de Cardigos, um espaço agradável, seguramente refrescante no estio.

Em Vila de Rei já nos esperavam na pensão/restaurante com o invulgar nome “o Cobra”. Instalações de repouso e banho próximos dos valores mínimos do intervalo de confiança. Igual classificação para o jantar. Notas muito positivas para a sala de piso em xisto, bem decorada e boas vistas. Mais ainda para a jovem vilaregense que nos aprovisionou sem nunca abandonar a sua postura profissional, mesmo quando a conversa subia exageradamente de volume e os ditos raiavam o brejeiro.

Ao final da tarde, tempo para passeio pela zona mais antiga da vila, muito bem arranjada e limpa. Disponíveis vários museus – Geodesia, Municipal, das Aldeias, do Fogo etc., merecendo este último a nossa inspecção mais demorada. Recomenda-se. Os outros locais e motivos de interesse tiveram de ficar para uma próxima oportunidade, incluindo a sala José Cardoso Pires na Biblioteca Municipal. As ruas desertas não surpreenderam ninguém.



ETAPA IV: Vila de Rei – Alviobeira
Era dia de feira em Vila de Rei. O povo começou a juntar-se bem cedo e a azáfama era geral. Desjejuados em estabelecimento local, rumámos a oeste pelo PR1 VLR também conhecido por trilho das cascatas, direitinhos à cascata do Escalvadouro. A água da ribeira do Lavadouro é abruptamente obrigada a cair na vertical por uma parede de cerca de 10 metros criando um efeito que é sempre bonito de se ver. A descida até à estrada que nos levaria à ponte sobre o Zêzere, faz-se por um trilho estreito e inclinações por vezes pronunciadas, a vegetação ameaça abraçar-nos, enfim, a obrigar a cuidados especiais para evitar quedas e escorregadelas.




















Até ao Zêzere, os ténis pisaram, coisa rara neste projecto, cerca de 5 quilómetros de alcatrão. É um rio fabuloso, o Zêzere. Quem o mira desde a ponte, disfarçado de albufeira, não se lembra de o imaginar na sua forma original, rugindo viril, emproado por ter tido a paciência e a persistência de romper por entre aqueles montes, impondo imponentes penhascos e ravinas. Agora, à conta do enorme paredão de Castelo de Bode, o mirante delicia-se com um relaxante espelho de água, ligeiramente sinuoso, sugestivamente renomeado de “lago azul”. Lá em baixo, sob esse azul, escondem-se peixes de desmesurado tamanho, indevidamente importados de outras latitudes, devoradores das espécies autóctones, e que, uma vez, alguém mais assustadiço confundiu com um crocodilo, dando um surpreendente motivo de reportagem ao nosso amigo Nunes Farias.
Regressámos à terra batida até próximo de Ferreira do Zêzere. Alviobeira, já no concelho de Tomar assistiu à nossa chegada batidas já as 4 da tarde.


ETAPA V: Alviobeira – Fátima

Tirada valente até Fátima. Questionado sobre quão valente ela seria, o nosso estratega do GPS Xoaquim Branco, após muita insistência, lá foi adiantando que podiam muito bem ser mais de 40 metros vezes mil. Carlos Filipe, homem das Finanças, desconfiou e avisou que sobre aquele número deveria incidir IVA.  De luxo. O aparelhinho haveria de registar 46,9, junto à capelinha das aparições.

A viagem iniciou-se em modo predominantemente descendente até ao Nabão, com passagem pelo pontão que 2000 anos depois construíram a jusante da ponte romana que já não passa ninguém para o outro lado, na ribeira da Milheira. Em homenagem aos imperiais romanos que tanto nos ensinaram, fizeram os caminhantes questão de posar sobre a velha estrutura para a pequena objectiva assente em minúsculo espécie de tripé do Zé Manel Machado. Logo a seguir, demos com as ruínas de uma antiga fábrica de papel à beira do Nabão, num sítio aprazível, melhorado com um pequeno açude.






Geologicamente, já estamos no planeta do calcário. A floresta de pinhal e eucaliptal é muito menos densa, convivendo com outras espécies, a terra é mais facilitadora do trabalho humano, oferecendo-se mais fértil e aplanada. Indo de encontro às expectativas e vontade expressa dos caminhantes, Xoaquim Branco traçou um percurso, digamos, essencialmente rural, por caminhos maioritariamente de terra batida, algo diferente do caminho habitual que contempla longos trajectos em área urbana.





Na paisagem já se começa a destacar a colina do castelo de Ourém. Pese embora alguma resistência, considerando a distância já cumprida - quase 30 km - fomos discretamente encaminhados a subir ao castelo. Em boa hora. Sente-se que ali há muita história. A torre de D. Mécia espicaça a nossa imaginação fantástica, colocando-a aprisionada naqueles aposentos impedida de ser rainha de Portugal. A mesma pesquisa posterior também havia de nos dar a saber que foi daqui que o condestável bonjardino partiu para uma das vitórias maiores na nossa portugalidade, Aljubarrota.


A descida é feita pela calçada da mulher morta, decididos a rumar a Fátima sem vacilar. A aproximação é feita pelo Alto das Pinheiras com entrada na freguesia de Fátima pela N356, um troço marcado pela "calçada" natural em calcário tipicamente esburacado, ladeado por frondosa mata de arbustos onde pontifica o alecrim, emprestando um odor muito agradável.


Eis-nos no destino. Orgulhosos e com a alma cheia de novas sensações e experiências que "O CAMINHO" sempre nos oferece. Se as pudéssemos converter em valor material, seriamos umas pessoas abastadas.