segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

INSTANTÂNEOS - XII



O povo latino, dita uma estereotipada classificação universalmente difundida, é mais extrovertido, mais barulhento, mais dado aos afectos, por comparação com outras variantes da raça humana. Foi em Pontevedra que estabelecemos os primeiros contactos com um grupo de puertoriqueños que faziam jus ao dito estereotipo: fácil relacionamento, risada espontânea, efusivos. Os reencontros ao longo do percurso seriam quase sempre comemorados com uma rodada de Estrela Galícia 1906 Reserva para nós e de uma coke para eles (convém realçar que, para todos os efeitos, estamos perante americanos, cidadãos dos USA). À conta deles, haveríamos também de poder assistir a um botafumeiro extra o calendário habitual.

A consideração e o respeito que foram alimentando pelo nosso grupo, mercê da nossa natural simpatia, subiu exponencialmente (ah! pois, também somos latinos), tendo mesmo o Carlos Matos sido alcandorado a um estatuto próximo da divindade. Pelo menos para Ramón.

Conta-se.

Na noite anterior, Ramón, um dos nossos mais entusiásticos novos amigos puertoriqueños, deixou-se enredar na movida de Padrón e, desconhece-se a razão, terá substituído a habitual coke pela Estrela Galícia. Consta que terá juntado ainda um considerável número de chupitos. A sua impreparação para tais desmandos resultou, naturalmente, num estado anímico excessivamente exuberante que incluiu o deambular desfraldado pela alameda del Espolón, num total desprezo pela chuva miúda mas persistente que se abatia sobre Padrón. Apesar disso, tire-se-lhe o casco, apresentou-se às 6 da manhã na sala comum pronto a prosseguir viagem com os seus companheiros. 

Pouco antes dessa hora, Carlos Matos tinha reparado que Concepción, parente de Ramón, se preparava para atacar um prato cheio de batatas cozidas cortadas ao meio. Apenas batatas cozidas, sem mais nada, nem acompanhamento nem tempero. Chamou imediatamente Inserme, com quem regularmente partilha pequenos almoços especiais e admitiram ambos: “somos uns amadores”.



Chegavam entretanto os sons de um Ramón que chorava baba e ranho, clamando por ajuda divina: acabara de reencontrar, na rua e à chuva, a sua credencial de peregrino, extraviada na noite anterior. O estado lastimoso em que estava comprometia seriamente a sua consideração na entrega do diploma de peregrino, um documento de importância maior para ele. Afinal, era também por esse comprovativo oficial que ele tinha vindo.

Apiedou-se dele Carlos Matos. Mobilizou todos os seus conhecimentos e experiência na nobre arte da encadernação e, paciente e cuidadosamente, restaurou a preciosa peça ao nível do aceitável no gabinete dos diplomas. As manifestações de apreço e de agradecimento de Ramón foram bem expressivas, como é apanágio do povo latino. 


Não tivemos oportunidade de lhes transmitir, mas consideramos o botafumeiro especial como paga bastante.