domingo, 21 de junho de 2015

Diário de Caminhada - Caminhos do fim da terra - Etapa I

CAMINHOS DO FIM DA TERRA

Caminhantes:
Anselmo, Benvinda Monteiro, Conceição Pires, Elsa Maia, Fernando Micaelo, Jaime Matos, João Valente, Joaquim Branco, José Manuel Machado, Paula Marques, Raul Maia.


ETAPA I: Santiago – Negreira, 24,2 Km
07/06/2015


Novo objectivo: palmilhar o troço do camiño mais ancestral, aquele que, supostamente, seria a peregrinação pré cristã até ao “fim da terra”.

Estão razoavelmente identificadas todas as condicionantes que conduziram ao surgimento do movimento peregrinatório a Compostela, e em especial a estas terras de Muxía e Fisterra, quer na dimensão lendária quer histórica. Do saco das lendas saem as histórias que envolvem a barca de pedra, a da Virgem que se lhe apresenta a incentivá-lo à evangelização e a do transporte do seu corpo decapitado até Padrón, as que garantem que a pedra d’Abalar é a barca, e a pedra dos Cadris é a vela onde viajou a virgem; da bolsa da história saem as teorias, verosímeis, da cristianização de locais e ritos pagãos, essencial à difusão e reforço da fé cristã, mas também o aproveitamento político do movimento de expansão do cristianismo face às investidas muçulmanas. Não deve ser por acaso que a sepultura do apóstolo é “descoberta” no seculo IX, vinham os mouros a subir a Península Ibérica a impor outro deus e outra religião. Admissível é igualmente a tese da existência de movimentos pré-cristãos associados à veneração de locais místicos, onde existiam pedras que se moviam, mais pedras com propriedades curativas, mais a percepção do fim da terra, mais o culto ao sol, mais o esoterismo e romantismo que gostamos e precisamos de atribuir às antigas tribos celtas, suevas, etc.

Se calhar, o que nos impeliu a mais uma aventura neste trilho que oficialmente faz parte integrante do camiño vem destas dimensões mística, lendária, histórica, cultural e religiosa (para alguns); também há-de sustentar-se no quadro motivacional de cariz mais individual que advém da oportunidade de melhorar o auto-conhecimento através da introspecção e da interação com os companheiros de jornada, bem como com a multidão de peregrinos que comungam o espírito do camiño; e ainda, deverá inspirar-se naquela sensação algo masoquista de obter satisfação e sentir orgulho inerentes ao sofrimento físico inevitável quando se caminha num território difícil mas belo, para se chegar a um destino que se pressente efectivamente místico.

A estratégia operacional e logística foi previamente delineada e seguiu o modelo já testado e bem sucedido em anteriores jornadas: viagens de ida e volta em minibus alugado, pernoitas em albergues, alimentação em unidades locais. As tropas reuniram-se no terminal rodoviário de Castelo Branco à uma da tarde, às 8 já estávamos a arrumar as mochilas no alberge “o ultimo sello”, ali a 200 metros do Obradoiro, na Rua do Preguntório. Era dia de final europeia mas, curiosamente, à hora do jogo, via-se mais gente a degustar pinchos e Estrella Galicia do que fixados na televisão. A vitória do Barcelona não resultou em euforias com desfiles de carros a apitar, nem manifestações de milhares de adeptos na praça do Obradoiro. Tudo tranquilo.

Dois contactos a registar logo à chegada: a simpática sexagenária do Colorado que connosco partilhou a camarata e que nos informou já ter realizado a viagem a Fisterra resumindo-a num “very nice”; o casal de argentinos que concluíram de bicicleta o caminho francês. Ela jurou-nos que iria passar muito tempo até voltar a montar uma bicicleta. Para a animar, partilhámos com eles uma taça de vinho verde e uma talhada de queijo de ovelha de Alcains sobre um naco de pão da Zebreira, proporcionando-lhes a descoberta de um cheiro e sabor completamente novos. Deu-nos a sensação que ficaram impressionados.

A noite de Santiago ofereceu-nos um excelente aperitivo: vários artistas de rua nas imediações da catedral, a tuna compostelana dava um pequeno concerto nas arcadas do Paço Raxoi mesmo em frente à catedral, mas o que nos fixou foi o arraial que estava armado na praça de S. Martinho, apinhada de gente aos saltos e a acompanhar o trio musical de cinquentões que ia passando em revista reportório dos anos 60 e 70. Naturalmente, a hora de deitar foi significativamente atrasada. Acresceu, que até cerca das 3 da manhã, aos aposentos chegavam nitidamente audíveis as vozes de numerosos noctívagos foliões, a falar, a rir, até a cantar cantigas desconhecidas mas claramente em desafinação. O boicote ao sono consumou-se com os ruídos produzidos pelos motores dos veículos dos serviços de limpeza. Ou seja, em bom português, quando não é do cú, é das calças: o roncador mor Zé Manel presenteou-nos com uma noite aceitável, em contrapartida, tivemos direito a uma noite de insónia forçada por via da movida compostelana. É a vida! Se calhar, é a sina do peregrino.


O toque de alvorada soou logo a seguir e às 6 da manhã já estávamos a passar novamente pela Obradoiro, embicados à Rua das Hortas e a iniciar oficialmente a jornada em direcção a Negreira. Temperatura amena, conversa descontraída e animada até Água Pesada. Aqui, por volta do km 11 inicia-se um trilho de mais de 3 quilómetros onde o esforço para contrariar a gravidade obriga a maior concentração, amenizada pela frescura do frondoso e sombreado bosque de castanheiros e carvalhos, e dos banquinhos para descanso que surgem a intervalos regulares. 


Paragem técnica em Ponte Maceira (sec XIV), num local aprazível na margem esquerda do rio Tambre, logo aproveitado pelos nossos 3 sketchers para o oportuno registo nos cadernos gráficos.









Chegada a Negreira e ao albergue S. José às 2 da tarde, uma hora excelente para se chegar, sobretudo se se pretende passar o resto da tarde a realizar trabalho de campo, utilizando a técnica da observação participante, em descontraído convívio com os autóctones. Na esplanada do restaurante “A Vila”, calhou darmos logo com a portuguesa de Nelas Maria da Conceição casada com o galego Rafael Gonzalez, filho de Maruja. Rafael é comercial de uma empresa de madeiras e mobiliário com unidades em Portugal, designadamente em Nelas, mas fez questão de sublinhar que não foi o interesse comercial que levou a que Maria da Conceição abandonasse a bela vila de Nelas: foi mesmo amor. Na mesa ao lado, a germânica Helga, 65 anos, contou que tinha feito o caminho entre León e Santiago e partilhava agora os nossos trilhos, mas o mais extraordinário que nos confidenciou foi que anda nisto desde 2007, caminhando cerca de 500 quilómetros por ano, tendo já percorrido praticamente todos os caminhos que da Alemanha para cá vêm dar a Compostela.


O trabalho de campo, por exclusiva responsabilidade de Rafael e amigos, prolongou-se quase até às 9 da noite que na Galiza ainda tem a mesma luz que em Portugal. Os temas iam sendo abordados consoante a curiosidade científica de cada um, mantendo-se apenas o acompanhamento privilegiado das Estrella Galícia 1906 Reserva Especial e os pratos de Raxo – lombo de porco cortado em cubos, previamente macerado durante 8 horas, temperado com alho picadinho, salsa muita, oregãos e pitada de pimentão, tudo cozinhado em frigideira com fio de azeite e abundantemente regado com vinho branco. Uma iguaria que todos classificaram de 5 estrelas, ou, se quisermos empregar uma expressão tipicamente galega, estava caralhudo.