terça-feira, 28 de julho de 2015

INSTANTÂNEO XIV

“Podemos não saber a razão porque fazemos o caminho, mas de certeza que temos uma”, decretou um filósofo de mochila às costas. Entre muitas outras, a perspectiva de encontrar gente de outras latitudes e estabelecer conversa, foi (é) uma das mais valorizadas motivações para se fazer o caminho. Isto é absolutamente verdade para estes peregrinos albicastrenses mas sê-lo-á seguramente também para muitos dos que abraçam esta extraordinária aventura de rumar a Santiago.

Não se perde uma oportunidade de interacção com qualquer um ou qualquer uma, velho ou nova, na língua mais a jeito. A entreajuda, essa, é uma obrigação sagrada. Um peregrino está sempre disponível para ajudar outro peregrino. Incondicionalmente. Assim deve ter sido ao longo dos séculos, desde que os druidas celtas se meteram a buscar o fim da terra para aí orarem ao deus sol, continuado na cristianização do movimento desviado para Compostela, partilhado e alimentado tanto por reis como Alfonso II ou a nossa Santa Isabel, como pelo humilde servo da gleba actual.

Zé Manel comunga, por excesso e por defeito, de personalidade e profissional, respectivamente, desse ancestral e verdadeiro espírito de acudir a qualquer um que necessite.

Aconteceu que - algures entre Pontevedra e Caldas del Rey - foi chamado a acudir a duas vistosas jovens que nele anteviram a imagem de um qualquer messias salvador. Parece que os dentes metálicos do fecho-eclair da mochila tinham cariado e não corriam no cursor. Parece que elas vinham pela arte e engenho de Zé Manel na esperança que ele encaixasse adequadamente os dentes do fecho-eclair da mochila.

Não há qualquer evidência que Zé Manel tenha entendido o que as duas beldades pretendiam dele, considerando a rudimentaridade do seu inglês. A verdade é que, Zé Manel, num tom entre o meloso e o provocatório, não hesitou:


- Ó meninas… eu tenho tudo o que vós precisais…


sábado, 18 de julho de 2015

Diário de Caminhada - Caminhos do fim da terra - Etapa IV

CAMINHOS DO FIM DA TERRA

Caminhantes:

Anselmo, Benvinda Monteiro, Conceição Pires, Elsa Maia, Fernando Micaelo, Jaime Matos, João Valente, Joaquim Branco, José Manuel Machado, Paula Marques, Raul Maia.


ETAPA IV – Muxía - Fisterra
10/06/2015




Naquele tempo, julgava-se que o cabo Fisterra era a ponta mais ocidental da Europa, o local onde a terra acabava e o mar sem fim começava. Havíamos de ter oportunidade de esclarecer alguns peregrinos desactualizados, e apontar o cabo da Roca como o ponto mais ocidental do continente europeu. Na hora, não houve discernimento para tal, mas teríamos feito um figurão se a esses mesmos peregrinos exibíssemos que em matéria de fim da terra e começo do mar, nós, se calhar melhor que ninguém, também podemos falar d’alto, e ilustrássemos assim (com a devida vénia ao galáctico Camões):

"Já a vista pouco e pouco se desterra
Daqueles pátrios montes que ficavam;
Ficava o caro Tejo, e a fresca serra
De Sintra, e nela os olhos se alongavam.
Ficava-nos também na amada terra
O coração, que as mágoas lá deixavam;
E já depois que toda se escondeu,
Não vimos mais enfim que mar e céu

Até Fisterra, sabiamo-lo, só encontraríamos um local para parar e abastecer: Lires. Pressente-se a proximidade do mar, mas só o veríamos à vista da enorme baía dominada pelo imponente Monte Pindo. O trajecto é agradável, propício a amenizar a fadiga do 4º dia consecutivo de caminhada, sobretudo nos trilhos estreitos bordejados por bastos e verdejantes fetos e ensombreados por frondosos carvalhos e eucaliptos empinados.






A espaços, ocorria o cruzamento com os muitos peregrinos que optaram por realizar o caminho a terminar em Muxía. No mesmo sentido que o nosso, destaque para as 4 jovens japonesas que mereceram a nossa simpatia e admiração, não só porque se exibiam sempre sorridentes como é do seu perfil estereotipado, mas também porque caminhavam há 45 dias seguidos. Depois de todo o caminho francês, ei-las a completar o circuito até Fisterra. Abona a favor, o facto de serem relativamente secas de carne, logo mais leves.






Em Fisterra, localidade, corremos a repor os níveis com duas canecas das grandes de cerveja com limão, mesmo antes de atacarmos o istmo de mais de 3 km até ao promontório sagrado, sabendo que a viagem era de volta atrás.

A literatura antiga convida o peregrino que completa ali o caminho a cumprir a tradição de queimar as botas e a indumentária que usa no momento, bem como a descer o promontório e mergulhar no mar ao por do sol. Autores mais liberais e atrevidos advertem mesmo que o banho no mar deverá ser feito sem qualquer roupa, sustentando a tese de que este banho de limpeza do corpo cansado está associada à limpeza de pecados concedida ao peregrino pelo facto de ter encetado e concluído a peregrinação. E, ainda, no facto trivial e pretensamente coerente de o peregrino não possuir roupas uma vez que as acabara de queimar. Foi cumprida apenas a parte da queima de tshirts usadas na empreitada. De resto, ofereceram-se os peregrinos um breve tempo de relaxe a mirar o tal mar sem fim, desde o tal fim da terra, na tentativa de pressentirem um cheirinho da perspectiva que seria a dos antigos quando ali chegavam e lhes era dado mirar o mar infindável no qual o sol se desvanecia todas as tardes. Aliás, toda a Costa da Morte carrega uma dimensão esotérica e mística, assente em numerosas lendas e cultos antigos, todos eles substituídos no processo de cristianização que se operou sobretudo durante a Idade Média, ou a ele referenciados.



Para além das histórias sobre a Virgem que navegava numa barca de pedra (Muxía), parece que a imagem do Santo Cristo terá dado à praia e originado movimento de grande devoção que ainda hoje perdura; a ira divina terá submergido cidades como Dugium como castigo por os seus mandantes não terem autorizado a sepultura das relíquias santas do apóstolo; na ponta do promontório os fenícios terão erigido um altar ao sol supostamente destruído por Santiago; monte Pindo seria uma espécie de Olimpo dos celtas, etc.

A mais fantástica, todavia, é a que nos leva a olhar para o céu nocturno estrelado e a imaginar aquela enorme mancha composta por biliões de estrelas, a que alguns chamam Via Láctea, mas muitos preferem ver ali a projecção do Caminho de Santiago apontando precisamente para esta Fisterra.





Carregados com a Muxiana e com a Fisterrana, carregados com os sentimentos de mais uma extraordinária experiência, carregados com a vontade de continuar a fazer caminhos, estes, e outros, regressaram estes peregrinos a casa. Satisfeitos. Limpos de todos os pecados.



Post Scriptum

Um pouco à margem do camiño propriamente dito, ainda 3 notas dignas de registo.

A primeira vai para a viagem de autocarro entre Fisterra e Compostela: quase 3 horas. A camioneta da carreira serpenteia por uma série de rias, pára em muitos apeadeiros, inclui transbordo para outra camioneta da carreira e, deixa-nos no terminal compostelano obrigando a mais 20 minutos de caminhada até ao albergue. Ou seja, o peregrino que acabou a sua viagem em Fisterra desde Muxía, foi ao promontório e regressou, quase 40 km palmilhados, ainda leva com 3 horas dentro de uma camioneta antes de tomar um duche, vestir roupa lavadinha e deambular um pouquinho por entre a velha história da velha Compostela.

Chegados à Rua de Preguntório - cá vai a 2ª nota -, já o sol se tinha amagado lá por debaixo de Fisterra, eis que são estes peregrinos informados de que não há duche com água quente, devido a avaria da caldeira. Valeu a motivação militar de alguns, o incentivo de outros, sustentado na tese de que a água fria é boa para os músculos, mas, sobretudo, a necessidade de se voltar a sentir aquela sensação de tapar um corpo lavadinho com roupa lavadinha.

Finalmente, 3ª nota, esta positiva: o reencontro do Xoaquim Branco com o nosso amigo Sergio de Nisa (blogue campus stellae). Foi no Manolo, restaurante habitual, mesmo antes da partida. A justificação desta referência advém do pormenor de que, contou Xoaquim, é a uma conversa em Nisa com Sergio que se deve ir buscar um dos embriões da ideia de se fazer o caminho português desde Castelo Branco. Aliás, Xoaquim e Matos, já por diversas vezes reivindicaram que, na verdade, eles os dois, e só eles, têm o percurso feito desde o Crato até Compostela. Não há muitos com este curriculum.

sábado, 11 de julho de 2015

Diário de Caminhada - Caminhos do fim da terra - Etapa III

CAMINHOS DO FIM DA TERRA

Caminhantes:
Anselmo, Benvinda Monteiro, Conceição Pires, Elsa Maia, Fernando Micaelo, Jaime Matos, João Valente, Joaquim Branco, José Manuel Machado, Paula Marques, Raul Maia.



ETAPA III: Olveiroa - Muxía
09/06/2015






Eram 7 da manhã, já rompido o dia quando abalámos de Olveiroa, convenientemente aconchegados com desayuno de 2 ovos estrelados com bacon. A paisagem é marcada pela profusão de torres eólicas que se multiplicam em todas as cumeadas, aproveitando a força que a aproximação do mar fornece ao vento. Não é propriamente o que se verifica hoje, início de Junho, sol a brilhar em céu azul, temperatura agradável, um quadro de fazer inveja aos habitantes das terras lusitanas, acima e abaixo dos montes hermínios onde parece que troveja. Os rios e ribeiras correm ainda vigorosos mostrando águas límpidas, frias de truta. Logo a seguir ao albergue de Longosa, em Hospital, a bifurcação para Muxía e Fisterra. Seguindo o plano delineado, prosseguimos para a primeira, em direcção a Dumbría.






Paragem técnica em Dumbría junto à igreja de Santa Eulália. A simpática jovem galega que nos franqueou a entrada convenceu-nos da veracidade da fantástica história da trasladação desta igreja para a sua actual jazida, pedra por pedra, no sec XVII, desde algures nas proximidades, sem saber precisar de onde. Para a época, deve ter sido uma operação arqueológica de engenhosa e notável envergadura.

Deduzimos que não estaríamos longe do destino quando o horizonte se nos abriu a mostrar a ría de Camariñas. Bordejando a ria e algumas praias apontámos ao monte Corpiño no sopé do qual se estendia Muxía que nos saudou com uma forte ventania.



Inevitável, mesmo aconselhável, a subida do Monte Corpiño, onde há vários motivos de reportagem. Desde logo, o horizonte onde pontificam, a ria de Camariñas e os contornos daquela a que chamam a Costa da Morte. Depois, a Igreja da Virgem da Barca, cujo interior – riquíssimo - foi quase todo destruído pelo incêndio que terá sido provocado por um raio durante uma tormenta, no dia Natal de 2013. A entrada está vedada ao público, sendo apenas permitido espreitar para constatar que prosseguem as obras de restauro. Impõe-se igualmente, pela sua dimensão, a “Ferida” um enorme bloco de pedra rachado ao meio em forma de greta e que pretende homenagear todos os voluntários que a estas bandas acudiram para minimizar os estragos produzidos pela maré negra que se escapou do petroleiro Prestige afundado junto a esta Costa da Morte em 2002.







Incontornáveis são, claro, as pedras, a dos cadris e a d’abalar. Afiançam-nos todos os escritos que a primeira será a vela e a segunda a barca na qual a virgem navegou para vir incentivar o apóstolo na sua missão evangelizadora. Garantem ainda os sábios escritos que a pedra dos cadris possui fantásticas propriedades como a de curar as doenças dos rins a quem por debaixo dela passar por nove vezes. A pedra d’abalar, por seu turno, mexe-se quando alguém com a alma e o coração puros se coloca em cima dela, mantém-se queda se se tratar de um pecador. À cautela, alguns destes peregrinos não deixaram de experimentar. Surpreendentemente, a pedra não se mexeu com nenhum deles.

Ceia no El Cordobés, gerido por Sergio, cujo avô, adiantou logo, era transmontano. Sugeriu-nos a degustação de gallo, um peixe mais ou menos comum por aquelas bandas. Razoável. Numa bancada, exibia uma colecção de concertinas, prontinhas a tocar por quem tivesse arte e engenho para tal. Ninguém se atreveu. Inserme ainda perguntou por um realejo mas, desafortunadamente, não havia nas redondezas, pelo que foi o próprio Sérgio que agarrou numa das suas concertinas de teclas e nos levou a acompanhar o "menina estás à janela". Na mesa ao lado, aplaudia o valente holandês que degustava deliciado uma travessa de navalheiras com a mulher que naquele dia se lhe tinha juntado, directamente de Amsterdam. Exibiu, orgulhoso, que tinha feito o caminho francês.




Num contraste assinalável com o dia, a noite de Muxía pediu casaquinho. Já no albergue, e porque ainda não era tarde, Micaelo abancou na sala comum a dar uns retoques nos seus sketches. Os ditos, mais a parafernália de lápis, pincéis, guaches, chamaram a atenção de 2 jovens lusitanas curiosas que com bons modos lhe pediram autorização para mirar os seus trabalhos. Ajudado por Inserme e Xoaquim, foi Micaelo alcandorado aos píncaros da genialidade pelas jovens, deslumbradas com a qualidade das obras. Modesto, ia o nosso Mike refreando os elogios, o que, desconfiamos, alimentou ainda mais a admiração das tugas.

Durante a noite, o suspeito do costume decidiu impor-se e exibir o seu estatuto de roncador mor do reino. Faltariam ainda 2 horas para o romper da bela aurora quando o peregrino francês que se acomodava na cama inferior do beliche fez contas de cabeça e terá concluído que, assim como assim, o melhor era sair dali e começar a andar. Agarrou nas suas traquitanas e trocou o concerto roncado pela sonata do vento soprante, e foi andando.




sexta-feira, 3 de julho de 2015

Diário de Caminhada - Caminhos do fim da terra - Etapa II

CAMINHOS DO FIM DA TERRA

Caminhantes:
Anselmo, Benvinda Monteiro, Conceição Pires, Elsa Maia, Fernando Micaelo, Jaime Matos, João Valente, Joaquim Branco, José Manuel Machado, Paula Marques, Raul Maia.


ETAPA II: Negreira – Olveiroa
08/06/2015



A segunda etapa foi cumprida em dia exageradamente quente para o padrão galego, com a temperatura máxima a ultrapassar os 30º. Entretanto, chegavam notícias de trovoada e chuva na nossa terra. 

Logo à saída de Negreira acoplou-se a nós o galego de Léon mas residente em Santiago, Valério Areas, um tagarela, viciado em caminhadas e em tirar selfies com toda a gente. Fez-nos boa companhia enquanto pôde e quis.

A paisagem típica deste canto do noroeste da Galiza é composta por colinas relativamente suaves, contrastantes com os picos pronunciados que se encontram no interior, povoamento disperso, baixo índice de urbanização e de industrialização, bosques de carvalhos robles, castanheiros e o inevitável invasor eucalipto, que bordejam extensas clareiras nas quais predomina a cultura do milho.
















Não se vislumbram poços, não se detectam sistemas de rega, seguramente porque o clima húmido atlântico dominante oferece a esta região precipitação regular e em valores elevados. As vinhas são escassas, na classe das hortícolas só se viam couves, cebolas e feijão, provavelmente porque as restantes são plantadas mais tarde. O que abunda é mesmo a cultura do milho, a maior parte dele recém semeado, acompanhada de outros cereais forrageiros, base da alimentação do principal recurso da região: vacas de leite, muitas vacas. Abundam igualmente grandes reservatórios de silagem em forma de tubos, herdeiros funcionais dos velhos espigueiros, a maior parte construídos em pedra e que em castelhano se diz horréo e em galego cabazo.


Aos olhos agrada a paisagem, sobretudo a miríade de tons de verde dos campos cultivados e da floresta, os ouvidos deleitam-se com as sonatas chilreantes dos passarinhos, o nariz, esse é sacrificado com um constante e incómodo odor a atirar para ácido a bosta de vaca.






Olveiroa, nota-se, já se estruturou para acolher peregrinos: vários albergues, restaurante e esplanada ampla e agradável. Tão agradável como o caldo galego que nos disponibilizou para a janta. A esplanada encheu-se de gente em confraternização, empenhada em entender e fazer-se entender na lingua mais a jeito. O inglês, essa lingua cada vez mais universal impunha-se, mas também se ouvia português, galego, castelhano e francês. Nota mais saliente para o reencontro com 2 belgas bebedores de cerveja que nos garantem que visitaram um pequena aldeia medieval, sem castelo, perto de Lisboa chamada qualquer coisa parecida com ibreianova. Ainda hoje, continuamos a desconhecer a sua localização e nome. Será a Avalon lusitana?

Albergue e restaurante Horreo, aceitáveis.