quarta-feira, 28 de setembro de 2016

INSTANTÂNEOS - XV


Reza qualquer manual que o peregrino deve preparar e planear cuidadosamente a viagem: o percurso, as etapas, as estadias nos albergues, o recheio da mochila, preparação dos pés, tipos de calçado, etc. No nosso caso, a responsabilidade de planeamento no que toca ao colectivo é habitual e competentemente assegurada pelo nosso Xoaquim Branco.

Ele leva tão a sério a missão – ou não fosse ele um garboso ex-militar – que chega ao pormenor de escolher criteriosamente o vinho que se vai degustar ao jantar do primeiro dia, aquele em que ainda é possível seguir esse tão são princípio “leva o teu e come de todos”.

Foi o caso. Desta vez, a escolha recaiu sobre uma Cartuxa, uma garrafinha contendo um néctar de conceituada qualidade superior, para acompanhar as iguarias que haviam de saltar para a mesa, finalizadas com um queijo de Castelo Branco mal cheiroso, mas de sabor e textura ímpar (em resultado deste excesso de zelo, consta que há peregrinos neste grupo que chegam a casa mais pesados do que quando partiram).

Envolta em folhas de jornal, foi a menina cuidadosamente acondicionada na parte superior da mochila, atada como se fosse um saco-cama.

Foi ainda no Entroncamento, essa terra famosa por determinados fenómenos inusitados que a tragédia ocorreu. Na linha nº 9 tinha dado entrada o comboio intercidades com destino a Porto Campanhã com paragens em Pombal, Coimbra B, Aveiro, Ovar e Espinho. Na azáfama habitual de procurar e ocupar lugar e arrumar bagagens, eis que foi necessário erguer a mochila na horizontal para a acondicionar no porta volumes superior.

Foi nesse acto que, inexplicavelmente, a Cartuxa deslizou dos jornais e veio estatelar-se a meio do corredor da carruagem nº 3, fragmentando-se em mais de 120 lascas de vidro. O líquido desenhou longas manchas corredor abaixo (por via da inércia do comboio já em andamento), libertando um aroma característico que, supõe-se, não terá incomodado os discretamente divertidos passageiros.

Responsável e solidariamente, mobilizou-se todo o grupo para ir buscar toalhetes de papel e, à passagem pelo apeadeiro de Fungalvaz já a carruagem nº 3 voltava a apresentar um aspecto satisfatório. O aroma, esse manteve-se até Fátima.