Projecto
(em curso): Caminho Francês, Fase 2.
Início:
Burgos
Término:
León
Etapas:
8
Partida:
26 de maio de 2024
Chegada:
02 de junho de 2024
Distância
total: 180 km
Acumulado
Caminho Francês: 480 km
Aníbal Azevedo, Anselmo
Cunha, Conceição Pires, Elsa Maia, Fernando Micaelo, Gena Cabaço, Jaime Matos,
Joaquim Branco, Manuela Gomes, Nulita Lourenço, Paula Marques, Raul Maia,
Teresa Silva.
1. Quatro notas de reportagem
2.
Duas ou três notas sobre cultura e história
3.
Do Caminho Francês (fase2)
1.
Nota
negativa
Em
Burgos, todos os anos, num dos sábados da primeira quinzena de maio, o
Ayuntamiento promove a “Noche Blanca”. Uma vez, um dia por ano.
Pois
calhou logo no dia em que estes peregrinos chegaram a esta histórica cidade
castelhana, para iniciarem a 2.ª fase do Caminho Francês. Por todas as praças e
ruas à volta da imponente catedral os burguenses ajuntavam-se para celebrar a
vida com os exageros conhecidos da movida espanhola. Em todas as praças havia
palcos montados com potente equipamento de som, os bares estavam autorizados
até horas tardias a servir pinchos para acompanhar os pintos, cañas,
chupitos...
Pressupõe-se
que a iniciativa terá nascido para gerar animação e projectar a cidade e a cultura
local. Todavia, é impossível não reparar no total desfasamento entre as
manifestações dirigidas à “cultura identitária” de Burgos e, as outras. E as
outras eram claramente as mais concorridas e barulhentas mas, sem qualquer
ponto de contacto com qualquer elemento da cultura local, ou regional /
castelhana, mesmo espanhola. O que se observa é uma espécie de
“macdonaldização” da cultura.
Num
dos palcos próximos da catedral, um grupo de jovens espanhóis paramentados ao
estilo dos jovens dos subúrbios de Nova Iorque que mostram os filmes
americanos, gastou mais de uma hora a debitar rap monótono, imperceptível, desconfia-se,
mesmo para os castelhano parlantes. A escassos 50 metros, na praça seguinte,
mesmo em frente à porta principal da imponente catedral de Burgos, um outro
grupo despejava o som estridente e distorcido do rock da pesada. Até quase de madrugada, a
batida techno fazia-se sentir no beliche, competindo com o ronco dos peregrinos
insensíveis a estas minudências, donde, para alguns peregrinos, aquela foi
mesmo uma “noche blanca”.
À
partida, manhã a despontar, ainda pudemos apreciar o (triste) espólio da dita
“noche blanca” nas ruas cercanas à catedral, cujo estado e aspecto contrastava
com o brilho da majestosa catedral a receber os primeiros raios de sol.
2.
En este pueblo
no sobran niños
À
entrada de Rabé de Las Calzadas um grande cartaz avisava: “en este pueblo no sóbran
niños”. Ainda que a chamada de atenção se destinasse a apelar aos cuidados a
ter pelos senhores condutores, a frase reflete, também, uma outra dimensão
significante. Em Espanha, observa-se o mesmo fenómeno que no nosso retângulo a
oeste plantado, no que toca à ocupação do território. Também aí se verificam
profundas assimetrias regionais, também aí existem dois países: uma Espanha
concentrada, grosso modo, na orla litoral e à volta de Madrid, e a outra,
imensa, em continuado processo de abandono e despovoamento. Os sociólogos do
território já lhe atribuíram uma designação: “España vaciada”. As similitudes entre
esta “España vaciada” e o nosso interior (cerca de um terço do território
português), são evidentes, nas causas e nos efeitos.
Em
2021, por lá, surgiu mesmo um partido com esse nome – España vaciada -,
assumindo como ideais centrais a defesa da ruralidade, o desenvolvimento
sustentável das áreas rurais e o combate ao despovoamento do interior de
Espanha. Concorrente às eleições municipais de 2021, não obteve um resultado
significativo. Regista-se com simpatia, porém, a iniciativa e a coragem.
Se
surgir algo semelhante em Portugal…
3.
Três vezes
abençoados
Independentemente
dos motivos que impelem cada um a partir para o Caminho, qualquer peregrino se
sentirá um pouco reconfortado se for abençoado por isso. Nesta nossa segunda
jornada do Caminho Francês, foram estes peregrinos abençoados por três vezes.
A
primeira foi em Rabé de Las Calzadas. O sino tocava a chamar os crentes para a missa
na Igreja da Parróquia de Santa Marina. Porque o Caminho também é isto, decidimos
participar.
No
espaço fundeiro da igreja, oposto ao altar, sobreelevava-se uma espécie de
palco onde se alinhava o coro local, polifónico, composto por uma organista, 6 vozes
femininas e quatro masculinas e, muito afinado, foi debitando os cânticos do
repertório litúrgico.
A
nossa presença foi assinalada pelo celebrante e reconhecida pela sua benção.
Na
missa, mesmo atrás de nós, estava uma simpática freira das Irmãs da Caridade,
pequena estatura, face enrugada e sorridente. Mal o coro terminou o cântico final,
saiu apressada. Havíamos de saber um pouco depois que o fez para nos esperar na
capela umas centenas de metros mais adiante, à saída del pueblo, para onde nos convidou a entrar. À vez, ela colocou a
sua mão na nossa cabeça e proferiu uma pequena oração de bênção de protecção e incentivo
no Caminho de Santiago mas também no Caminho da Vida, colocando depois no nosso
pescoço uma pequena medalha de lata pendurada num singelo fio de algodão e, em
jeito de despedida, ofereceu-nos um abraço. Peregrinos houve que, emocionados,
não conseguiram evitar o humedecimento das retinas.
A
terceira bênção aconteceu em Carrión de Los Condes, na missa do peregrino celebrada
a meio da tarde na Igreja de Santa Maria. Quando o Senhor Prior perguntou,
acusou-se gente proveniente de treze nacionalidades, sendo as mais longínquas a
Austrália, Coreia do Sul, Japão e Peru. Ficou registado que a delegação mais
volumosa era, nesse dia, a portuguesa.
4.
As
catacumbas de Castrojeriz
O
Hospitaleiro José, proprietário do Albergue Ultreya é uma figura peculiar, na
personalidade afável, na disponibilidade, mas sobretudo na forma de se
exprimir, provavelmente, por influência da sua profissão de professor que foi
durante toda a sua vida ativa, agora aposentado. Ensinava matemática mas,
também tinha uma notória veia de historiador e de etnólogo, comprovada pela
paixão com que discorria sobre a história local.
Acompanhando
todo o comprimento da comprida mesa onde nos forneceu o jantar, pendia uma vara
de lagar que saía da parede e terminava no fuso colocado ao lado da cabeceira. Não,
não era uma vara de lagar de azeite – que por aquelas bandas não há oliveiras –
mas uma vara de lagar de vinho. O interessante – ou não – é que também não há
vinhas. Mas já houve, diz-nos algo desconsolado José. De facto, parece que os
extensos campos em torno de Castrojeriz semeados de cereais vários, em tempos
idos, já estiveram ocupados com vinhedos.
Após
o jantar, iniciou ele a sua aula, composta por duas partes. Na primeira, alardeou
a sua postura e tiques professorais, fazendo acompanhar o discurso com gestos e
sons como se estivesse ainda na sala de aula a falar para os seus meninos.
Explicou detalhadamente como funcionava a vara no processo de produção do
vinho, terminando como uma componente prática para a qual mobilizou vários
peregrinos que colocou a fazer rodar o fuso. Depois, fez-nos descer por umas
escadas estreitas até às “catacumbas” do edifício. Por baixo do albergue
existiam algumas galerias que terão feito parte do sistema de defesa da
localidade, presumivelmente com ligação ao castelo, tese sustentada por vários
elementos das épocas romanas e medieval. Em tempos mais recentes, estas
galerias subterrâneas foram utilizadas como adegas de conservação de vinho,
tirando partido das baixas temperaturas.