Caminhar
por gosto…também cansa.
Quem
passa metade do dia ao sol, à chuva, ao vento, a pisar terra batida, gravilha,
sarrisca, pedras soltas, seixos, alcatrão, lama, vencendo subidas e descidas de
inclinações várias, com pesos variáveis às costas, ainda que nisso consiga
obter prazer … cansa. Na sua acepção mais radical, estamos perante um caso de
masoquismo. Todavia, podemos confortar-nos com a ideia de que é um masoquismo
"saudável".
O espírito, indiferente à dor, só pensa na glória. Nessa glória que se pressente no fim de cada etapa, que se alimenta de horizontes abertos, da paleta de cores da natureza, das piadas suscitadas pelas situações, dos sabores dos cardápios, das partilhas de casos de vida, dos contactos com os autóctones.
O corpo, esse, pede
descanso. E a noite terá sido inventada para isso.
As noites dos
peregrinos contêm sempre alguma agitação. Quando supostamente, seria
necessário ter uma noite de descanso para permitir a recuperação, isso é
conseguido apenas por alguns: os que demoram menos de 2 minutos a adormecer, e
passam como foguetes para a fase do ronco.
Os
outros, a maioria, os que ficam algum tempo a fazer a revisão da jornada,
sujeitam-se. A sua noite, que devia ser de recuperação pelo sono -
eventualmente pelo sonho - transforma-se em pesadelo.
Foi na etapa XV que se fez referência a esta problemática das noites dos peregrinos e a sua íntima associação à roncopatia, tendo-se recorrido a Mestre Aquilino. Justifica-se a represtinação:
“O diabo é que ele ressonava mais alto, variado e plangente que o órgão na vigília da Paixão. Fosse obra de esturrinho, com semiobstrução das fossas nasais, o certo é que dentro daquelas ventas monásticas ora mugiam dez gaitas de foles galegas, ora assobiava a gaitinha de palha mofareira que os rapazes fazem do trigo a apendoar. A partitura entrecortava-se de solos que estrugiam pelo claustro e deviam, transbordando para o exterior, extasiar céu e terra. Quando no decorrer dum piano pianíssimo, que também tinha dessas variações a trompa prodigiosa, Luís Azevedo conseguia pregar olho, de repente soltava ela um larghetto, com notas de oboé e rabecão, e lá se ia o regalado soninho. Às seis horas da manhã, quando começou a luzir a claraboia e um cochicho veio para os loureiros soltar a sua solfa, ainda andava ele aos tombos com o travesseiro.”
Se bem que, dizem-nos as estatísticas, a roncopatia é um problema que afecta mais de metade da população adulta e em particular os homens, a verdade é que as suas manifestações assumem figurinos muito diversos, quase se diria, muito ricos, se se importarem para a análise indicadores como o volume, o timbre, a duração do som, ou mais apropriadamente, dos sons.
Num exercício puramente especulativo sem qualquer base científica validada, mas, ao menos, sustentado na empiría desta jornada (e sob inspiração aquiliana, admite-se), inventaram-se duas tipologias, pretendendo classificar os roncadores e os que, também o sendo, passam menos bem as suas noites.
Comece-se pela tipologia destes últimos:
“O diabo é que ele ressonava mais alto, variado e plangente que o órgão na vigília da Paixão. Fosse obra de esturrinho, com semiobstrução das fossas nasais, o certo é que dentro daquelas ventas monásticas ora mugiam dez gaitas de foles galegas, ora assobiava a gaitinha de palha mofareira que os rapazes fazem do trigo a apendoar. A partitura entrecortava-se de solos que estrugiam pelo claustro e deviam, transbordando para o exterior, extasiar céu e terra. Quando no decorrer dum piano pianíssimo, que também tinha dessas variações a trompa prodigiosa, Luís Azevedo conseguia pregar olho, de repente soltava ela um larghetto, com notas de oboé e rabecão, e lá se ia o regalado soninho. Às seis horas da manhã, quando começou a luzir a claraboia e um cochicho veio para os loureiros soltar a sua solfa, ainda andava ele aos tombos com o travesseiro.”
Se bem que, dizem-nos as estatísticas, a roncopatia é um problema que afecta mais de metade da população adulta e em particular os homens, a verdade é que as suas manifestações assumem figurinos muito diversos, quase se diria, muito ricos, se se importarem para a análise indicadores como o volume, o timbre, a duração do som, ou mais apropriadamente, dos sons.
Num exercício puramente especulativo sem qualquer base científica validada, mas, ao menos, sustentado na empiría desta jornada (e sob inspiração aquiliana, admite-se), inventaram-se duas tipologias, pretendendo classificar os roncadores e os que, também o sendo, passam menos bem as suas noites.
Comece-se pela tipologia destes últimos:
1. os bolcheviques, declaradamente
à esquerda no expectro ideológico são, naturalmente, os mais
inconformados, conhecidos por adoptarem medidas de contestação que podem
atingir as raias da agressividade, sendo que a mais frequente é a de fazer
sentir ao roncador que existem mais almofadas para além da sua;
2. os intelectuais de esquerda, pegam no livrinho,
no equipamento portátil de som e vão sentar-se no sofá do espaço comum a
adiantar páginas, e, desprezando todas as regras da ergonomia, adormecem assim
mesmo, retomando a posição de deitado na cama meia hora antes da hora de
levantar, invectivando com veemência no dia seguinte, porém, os responsáveis
pelas suas olheiras;
3. os mencheviques, posicionados
no centrão, não são adeptos do uso da violência ou de outra qualquer medida
mais viril, preferindo recorrer a métodos alternativos como sejam, por exemplo, o de fazer
determinados sons com a boca, na esperança vã de que isso vá reduzir o ruído da
vibração dos tecidos na respiração do roncador;
4. Os laisser faire laisser passer,
liberais por instinto, acreditam que as forças antagónicas em competição,
tenderão para o equilíbrio e, mais tarde ou mais cedo, acabarão inevitavelmente
por adormecer;
4. os teimosos,
tendencialmente conservadores, incomodados com a situação mas resistentes à
mudança, mantêm-se firmes e hirtos na horizontal, ocupando o tempo a
explorar todas as posições do seu corpo estirado no colchão, enquanto se
dedicam a contar um número infinito de ovelhas que imaginam a saltar uma
vedação, esperando que o cansaço vença, acabando por adormecer meia hora antes
da hora de levantar;
5. os abstencionistas, alheios
a tudo, confiantes apenas na ajuda de uma qualquer droga indutora do sono.
Os
roncadores, esses, podem arrumar-se em outras tantas categorias:
1.
Os concertistas: recorrem preferencialmente aos metais e
madeiras graves, e, dentro destes, exibem uma predilecção inexplicável pela
tuba, pelo trombone e pelo contrabaixo; a espasmos, mas por breves
instantes, concedem a entrada do fagote, do oboé, e mesmo da gaita de foles;
2.
os sinfónicos: recorrem aleatoriamente a todos os
instrumentos, desde que da classe dos aerofones ou membranofones, variando
apenas entre o allegro, o andante, o adagio e o largo;
3.
os missalistas, habitualmente na variante réquiem, respeitadores do Kyrie e do Credo,
mas amiúde boicotadores do verdadeiro espírito do Sanctus e do Agnus
Dei; os mais hereges chegam a intrometer uma gaita de foles;
4.
os sonatistas: modestos e poupados, recorrem apenas a dois
ou três instrumentos, mas sempre de entre o violoncelo, a trompa, o saxofone ou
o oboé;
5.
Os serenatistas: adeptos dos metais e das madeiras mais
leves, hesitam entre a trompa e o fagote, ocasionalmente concedem um
violoncelo.
Apenas
para memória futura, foi democraticamente estabelecido o ranking dos
roncadores:
1. Zé
Manel Machado (por unanimidade e
aclamação)
2.
Fernando Gaspar
3.
Carlos Matos
4.
Conceição Branco, Anselmo
5. Raul
Maia, Jaime Matos
6.
Xoaquim Branco
7.
Piedade
8. Elsa
Maia
9.
Benvinda Monteiro, Paula Marques, Fernando Micaelo
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