O povo latino, dita uma estereotipada classificação universalmente difundida, é mais extrovertido, mais barulhento, mais dado aos afectos, por comparação com outras variantes da raça humana. Foi em Pontevedra que estabelecemos os primeiros contactos com um grupo de puertoriqueños que faziam jus ao dito estereotipo: fácil relacionamento, risada espontânea, efusivos. Os reencontros ao longo do percurso seriam quase sempre comemorados com uma rodada de Estrela Galícia 1906 Reserva para nós e de uma coke para eles (convém realçar que, para todos os efeitos, estamos perante americanos, cidadãos dos USA). À conta deles, haveríamos também de poder assistir a um botafumeiro extra o calendário habitual.
A consideração e o
respeito que foram alimentando pelo nosso grupo, mercê da nossa natural
simpatia, subiu exponencialmente (ah! pois, também somos latinos), tendo mesmo
o Carlos Matos sido alcandorado a um estatuto próximo da divindade. Pelo menos
para Ramón.
Conta-se.
Na noite anterior,
Ramón, um dos nossos mais entusiásticos novos amigos puertoriqueños, deixou-se
enredar na movida de Padrón e, desconhece-se a razão, terá substituído a
habitual coke pela Estrela Galícia. Consta que
terá juntado ainda um considerável número de chupitos. A sua impreparação para
tais desmandos resultou, naturalmente, num estado anímico excessivamente
exuberante que incluiu o deambular desfraldado pela alameda del Espolón, num
total desprezo pela chuva miúda mas persistente que se abatia sobre Padrón.
Apesar disso, tire-se-lhe o casco, apresentou-se às 6 da manhã na sala comum
pronto a prosseguir viagem com os seus companheiros.
Pouco antes dessa
hora, Carlos Matos tinha reparado que Concepción, parente de Ramón, se preparava
para atacar um prato cheio de batatas cozidas cortadas ao meio. Apenas batatas
cozidas, sem mais nada, nem acompanhamento nem tempero. Chamou imediatamente
Inserme, com quem regularmente partilha pequenos almoços especiais e admitiram
ambos: “somos uns amadores”.
Chegavam entretanto
os sons de um Ramón que chorava baba e ranho, clamando por ajuda divina:
acabara de reencontrar, na rua e à chuva, a sua credencial de peregrino,
extraviada na noite anterior. O estado lastimoso em que estava comprometia
seriamente a sua consideração na entrega do diploma de peregrino, um documento
de importância maior para ele. Afinal, era também por esse comprovativo oficial
que ele tinha vindo.
Apiedou-se dele
Carlos Matos. Mobilizou todos os seus conhecimentos e experiência na nobre arte
da encadernação e, paciente e cuidadosamente, restaurou a preciosa peça ao
nível do aceitável no gabinete dos diplomas. As manifestações de apreço e de
agradecimento de Ramón foram bem expressivas, como é apanágio do povo latino.
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