“Da nossa casa a Santiago de Compostela”, etapas XX a XXIV.
Caminhantes: Anselmo, Benvinda Monteiro, Carlos Matos, Conceição
Branco, Elsa Maia, Fernando Gaspar, Fernando Micaelo, Jaime Matos, Joaquim
Branco, Paula Marques, Piedade, Raul Maia, Zé Manel Machado.
Nota importante: a escrita que
segue prescinde da referência a todo o vasto e rico património que ao peregrino
é oferecido ao longo do caminho (é consultar os guias, se faz favor),
privilegiando as impressões pessoais e pequenos pormenores sem interesse.
De Tui (com i e não com y, em galego) a Santiago vão 115 kms de distância. O plano, gizado por quem já é experiente, previa início e final de etapas em Redondela, Pontevedra, Caldas de Reis, Padrón e Santiago.
Etapa XX: Tui - Redondela
06 de Junho de 2014, sexta
Tui (05:40) – Redondela (15:20)
Percorrido: 34,6 Km
Tempo total: 09:40
Tempo parado: 01:58
Velocidade média: 4,6 Km/h
Às 05:40 caía uma moinha em Tui, a
saída do albergue “o camiño” foi logo saudada por uma orquestra de chilreadores
madrugadores, audível em quadrifonia. Antes do início oficial da caminhada
foram os peregrinos investidos como tal pelo “pastor” Xoaquim Branco junto à
mui antiga catedral de Tui. Até O Porriño o percurso é agradável quase sempre
por entre frescos bosques de frondosos carvalhos, castanheiros, faias e amieiros,
apesar da chuva intermitente. Passagem por um dos pontos de referência do
Camiño neste trajecto: a ponte das Febres ou de S. Telmo, sobre o rio Louro,
que ali teria sucumbido na sua peregrinação no medieval ano de 1251. À entrada
d’O Porriño, desvio na rota tradicional com claras vantagens: em vez da
caminhada sobressaltada em alcatrão ao longo da congestionada e extensa zona
industrial, o percurso alternativo (devidamente homologado) cruza um verde e fresco
parque que bordeja o rio Louro.
A primeira tirada, relativamente
longa, concluiu-se no bar o Alpendre em Mos, onde o simpático Efren se mostrou
bastante amistoso e eficaz a abrir garrafas de alvarinho e a tirar caricas às
Estrela Galicia 1906.
Subidas e descidas, às vezes
pronunciadas, até Redondela. O albergue funciona na Casa da Torre, um edifício
do sec. XVI com uma arquitectura singular, e situa-se no centro da localidade,
à beira de um dos riachos que descem das cercanias para um braço da ria de Vigo.
Em Redondela era fim de semana do
Festival Milho Verde, um evento de música alternativa que incluía no programa
as bandas lusas Blasted Mechanism e Triciclo Vivo. Não fosse o nosso
compromisso de caminhar firmes e hirtos até Compostela, e estes peregrinos ter-se-iam
juntado aos inúmeros adeptos das tranças rastafari e vestimentas
nostalgicamente hippies. Cumpridores da disciplina dos albergues, escolheram,
em alternativa, assistir e participar (alguns) no concerto de polifonia roncal
que espontânea e improvisadamente se armou no albergue do edifício da Torre do
sec. XVI.
Etapa XXI: Redondela - Pontevedra
07 de Junho de 2014, sábado
Redondela (06:43) – Pontevedra
(12:20)
Percorrido: 19,3 Km
Tempo total: 05:37
Tempo parado: 01:20
Velocidade média: 4,3 Km/h
Reinício às 06:40 com destino à
capital provincial Pontevedra. Após ligeira subida, o caminho oferece
bonitas vistas sobre a ria de Vigo. Lá em baixo, algures, camuflados na
luminosidade bassa das águas, estarão afundados os galeões espanhóis carregadinhos
de ouro sulamericano que em 1702 foram afundados na batalha de Rande. A ponta
da ria é atravessada na ponte Sampaio, romana na origem, subsiste traça
medieval de 10 arcos. Assinale-se a coincidência: foi ali, naquele exacto
local, faz hoje precisamente 205 anos, dia 07 de junho de 1809, que se travou a
batalha da Muinheira, cuja vitória terá contribuído para a independência
espanhola face às investidas do Bonaparte. Por fugazes instantes, alguns peregrinos
quiseram render-se à ilusão de ainda ouvir os ecos longínquos do som suplicante
de uma gaita de foles galega e a batida aflita de uma pandeireta.
A chegada prematura a Pontevedra obrigou
a compasso de espera até à abertura do albergue. Instalações razoáveis, dispõe
de serviço de lavandaria e secagem de roupa, valência muito oportuna para a
reposição do stock. Após instalação, passeio pelo centro histórico de
Pontevedra, com entrada pela famosa Porta do Caminho marcada no chão. A cidade apresenta-se
limpa, exibe vasto património, espaços organizados de fruição pedonal, praças
bonitas rodeadas de arcadas graníticas. Destaque para a capela da Peregrina, em
forma de vieira. Antes de recolher, numa das praças, tempo para degustar a
panóplia de pinchos sempre prontos a sair para acompanhar a Estrela Galicia 1906
Reserva Especial (nota máxima) e o Alvarinho branco (nada de especial). O albergue
está cheio, ouvem-se linguajares de todo o mundo.
Etapa XXII: Pontevedra - Caldas de Reis
08 de Junho de 2014, domingo
Pontevedra (07:40) - Caldas de
Reis (15:26)
Percorrido: 26,2 Km
Tempo total: 07:46
Tempo parado: 01:58
Velocidade média: 4,5 Km/h
O grupo ficou mais rico na
madrugada de Pontevedra com (re)união - por razões que foram justificadas e
aceites – da Benvinda, Piedade e
Fernando Gaspar.
Início com chuva miudinha, tréguas durante cerca de uma hora, abriram-se os céus durante a seguinte, até San Amaro, onde nos esperava um abrigo com pequeno almoço e cassete acesa. A simpatia e o conforto foram retribuídos com cantorias e boa disposição em geral.
Continuámos em modo molhado durante um longo e cansativo percurso.
A pouco mais de uma légua para Caldas, desvio ligeiro de cerca de 2 quilómetros para apreciar a cascata do rio Barosa. A água pula e escorre cristalina por entre enorme barrocos num sítio aprazível, propício ao relaxamento do corpo e da mente. Valeu a pena o desvio.
A pouco mais de uma légua para Caldas, desvio ligeiro de cerca de 2 quilómetros para apreciar a cascata do rio Barosa. A água pula e escorre cristalina por entre enorme barrocos num sítio aprazível, propício ao relaxamento do corpo e da mente. Valeu a pena o desvio.
Em Caldas, os peregrinos
conferiram a elevada temperatura das águas termais que brotam das bicas. Com as
mãos. Um cartaz proibia expressamente mergulhar os pés. Devidamente instalados,
lavados e perfumados, pequena volta turística pela vila com paragem demorada na
ponte de Bermaña, a fazer companhia aos nossos urban sketchers.
Etapa XXIII: Caldas de Reis - Padrón
09 de Junho de 2014, segunda
Caldas de Reis (06:25) – Padrón
(11:40)
Percorrido: 19 Km
Tempo total: 05:05
Tempo parado: 00:54
Velocidade média: 4,6 Km/h
Finalmente, uma etapa sem chuva e
temperatura agradável para caminhar. Caminhada tranquila, pois, o espírito das
tropas recomenda-se, o moral mantém-se em níveis elevados.
Passagem por Pontecessures e
entrada em Padrón pela sombreada alameda del Espolón, colocada mesmo à beirinha
do rio Sar, no sitio onde, afiançam os crentes nas antigas lendas, terá
navegado e atracado a barca de pedra com os restos mortais do apóstolo Santiago
trazida pelos seus discípulos Teodoro e Atanásio. Do outro lado do rio um
monumento alusivo.
Não se pode passar em Padrón sem assinalar
e tomar nota de duas referências associadas ao local. A primeira é gastronómica
e, claro, são os pimentos del padrón,
unos pican otros non. A sorte de calhar um picante bafeja apenas alguns,
muito poucos, provavelmente só os que merecem. Houve quem se pusesse a trincar
pimentos à bruta na mira de apanhar um picozinho na língua, mas nada, nem um.
A outra referência – que na
verdade são duas - é literária e, obviamente, é Cela, Camilo José Cela, prémio
Nobel da Literatura em 1989. Embora menos conhecida, Rosalia de Castro é
igualmente figura maior na literatura galega, autora do “cantar da emigração”
musicado pelo nosso Adriano (Este parte, aquele parte, e todos, todos se vão,
Galiza ficas sem homens que possam cortar teu pão…).
Será digno de registo ainda,
nesta nossa pernoita em Padrón, a empatia estabelecida com a galega,
esquerdista e republicana Margarida no restaurante Ruta Xacobea e sua
adolescente filha Dana, assim batizada em homenagem à mãe dos deuses celtas
(supostamente cristianizada na figura de Santa Ana, mãe da Vigem Maria).
Atendimento simpático, alegre, profissional e, dentro dos parâmetros
orçamentais.
O albergue de Padrón situa-se
logo ali pertinho da ponte, ao lado da Igreja do Carmo, é de uma só nave,
beliches em madeira, 48 lugares, algo deficitário nos “asseos” (uma sanita e 2
duches conjuntos).
Etapa XXIV: Padrón - Compostela
10 de Junho de 2014, terça
Padrón (07:10) – Santiago de
Compostela (16:40)
Percorrido: 24 Km
Tempo total: 05:05
Tempo parado: 00:54
Velocidade média: 4,6 Km/h
O dia amanhece com chuviscos miudinhos
desmentindo a chica guapa que na TV Galícia anunciava dia de sol e calor. Mais
tarde, havemos de constatar que a chica guapa estava bem informada porque sobretudo
a partir de Teo, o sol despontou radioso, subsistindo apenas alguns farripos de nuvens baixas a tapar os
cumes das serranias. A entrada em Santiago já se faria sob céu azul e
temperatura de verão.
A partir de Padrón, parece que
teremos de calcorrear o mesmo trajecto dos diligentes discípulos de Santiago
Atanásio e Teodoro na sua missão de encontrar um local para depositarem a
relíquia que eram os restos mortais do apóstolo mata-mouros. Passagem e vénia
na casa de Camilo José Cela, pela romana Iria Flavia, caminhada tranquila e bem
disposta inspirada pelo cheiro a Compostela. Em Esclavitud, paragem (já mais ou
menos tradicional) para um chupito de hierbas.
Em Milladoiro, reforço alimentar
na Casa da Cultura, servidos por duas señoritas, uma da Venezuela, outra de
Colômbia. Ao longe, já se vislumbram as pontas superiores das torres da
catedral. Caminhada decidida em direcção à Ponte Velha sobre o Sar, variante de
Conxo por entre as matas arrabaldes de Compostela, entrada triunfal pela Porta
Faxeira direitinhos sem vacilar à Praça do Obradoiro. Eis-nos, por Santiago, 540 quilómetros depois, vaidosos e orgulhosos.
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