quarta-feira, 13 de agosto de 2014

INSTANTÂNEOS - XI



Se existe coisa banal na actividade peregrina é o aparecimento de bolhas nos pés, que é como quem diz, de borregas, na gíria popular. À partida, era espectável que elas surgissem, considerando as longas caminhadas e os muitos pisos irregulares. Todavia, mercê dos conselhos profilácticos dos companheiros enfermeiros, foram raros os episódios ao longo dos mais de 500 quilómetros desta longa jornada. Mas aconteceu.

Foi por alturas da ponte Sampaio, mais ou menos a meio da etapa que terminaria em Pontevedra que Inserme reportou que sentia uma areia permanente na planta do pé. Como “no hay glória sin dolor”, aguentou-se até ao fim da etapa sem mais queixinhas. Já instalados no albergue, convocou o conselho científico dos profissionais de saúde que se debruçaram atentamente sobre a situação e rapidamente se consensualizaram no diagnóstico: estávamos perante uma infecção vesiculosa e pruriente da pele, também classificado como eczema ou dermatite disidrótica, juntinho ao terceiro pododáctilo. Traduzido para leigos: uma borrega. A terapia também não oferecia qualquer celeuma, a mesma já aplicada e testada noutras situações similares com resultados satisfatórios.

Micaelo saca do kit, calça as luvas lilases, expõe a agulha, a linha preta, o algodão, as compressas, o frasquinho do líquido roxo, etc. Nesta altura, já o cenário contava com vários mirones que apreciavam a cena entre o divertido e o curioso, tecendo considerações e comentários em várias línguas, quiçá elaborando orçamentos. Impávido e sereno, Micaelo enfiou a linha preta no buraco da agulha e, delicada e cuidadosamente, fê-la passar de um lado ao outro da bolha. De seguida, com os dedos pressionou levemente para expelir os fluidos e induzir a drenagem através da linha. Embebeu uma noz de algodão no líquido roxo e pintou toda a área.

Preparava-se para finalizar com a aplicação de uma compressa quando um peregrino a dar ares de alemão – viríamos a saber que era Checo – fez questão de dar o seu contributo. Exibia um pedaço de esponja dos sofás e, num inglês meio arrevezado foi manifestando a sua desconfiança quanto à eficácia do método de tratamento utilizado pelo Micaelo, contrapondo com a aplicação, simples, do pedaço de esponja sobre a bolha. A breve discussão científica suscitada foi pacífica. Ficou registado o método alternativo, cuja simplicidade poderia eventualmente vantajoso noutras circunstâncias. Com alguma malícia, um dos peregrinos enfermeiro propôs logo que se lhe atribuísse um nome: o método do estofador.

Inserme, o paciente, esse ficou como novo, prontinho para chegar a Compostela sem areia alguma na planta do pé.

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