CAMINHOS DO FIM DA TERRA
Caminhantes:
Anselmo, Benvinda Monteiro, Conceição Pires, Elsa Maia, Fernando Micaelo, Jaime Matos, João Valente, Joaquim Branco, José Manuel Machado, Paula Marques, Raul Maia.
ETAPA IV – Muxía - Fisterra
10/06/2015
Naquele tempo, julgava-se que o cabo Fisterra era a ponta mais ocidental da
Europa, o local onde a terra acabava e o mar sem fim começava. Havíamos de ter
oportunidade de esclarecer alguns peregrinos desactualizados, e apontar o cabo
da Roca como o ponto mais ocidental do continente europeu. Na hora, não houve
discernimento para tal, mas teríamos feito um figurão se a esses mesmos
peregrinos exibíssemos que em matéria de fim da terra e começo do mar, nós, se
calhar melhor que ninguém, também podemos falar d’alto, e ilustrássemos assim
(com a devida vénia ao galáctico Camões):
"Já a vista pouco e pouco se desterra
Daqueles pátrios montes que ficavam;
Ficava o caro Tejo, e a fresca serra
De Sintra, e nela os olhos se alongavam.
Ficava-nos também na amada terra
O coração, que as mágoas lá deixavam;
E já depois que toda se escondeu,
Não vimos mais enfim que mar e céu
Daqueles pátrios montes que ficavam;
Ficava o caro Tejo, e a fresca serra
De Sintra, e nela os olhos se alongavam.
Ficava-nos também na amada terra
O coração, que as mágoas lá deixavam;
E já depois que toda se escondeu,
Não vimos mais enfim que mar e céu
Até Fisterra, sabiamo-lo, só encontraríamos um local para parar e
abastecer: Lires. Pressente-se a proximidade do mar, mas só o veríamos à vista
da enorme baía dominada pelo imponente Monte Pindo. O trajecto é agradável,
propício a amenizar a fadiga do 4º dia consecutivo de caminhada, sobretudo nos
trilhos estreitos bordejados por bastos e verdejantes fetos e ensombreados por frondosos
carvalhos e eucaliptos empinados.
A espaços, ocorria o cruzamento com os muitos peregrinos que optaram por
realizar o caminho a terminar em Muxía. No mesmo sentido que o nosso, destaque
para as 4 jovens japonesas que mereceram a nossa simpatia e admiração, não só
porque se exibiam sempre sorridentes como é do seu perfil estereotipado, mas
também porque caminhavam há 45 dias seguidos. Depois de todo o caminho francês,
ei-las a completar o circuito até Fisterra. Abona a favor, o facto de serem
relativamente secas de carne, logo mais leves.
Em Fisterra, localidade, corremos a repor os níveis com duas canecas das
grandes de cerveja com limão, mesmo antes de atacarmos o istmo de mais de 3 km
até ao promontório sagrado, sabendo que a viagem era de volta atrás.
A literatura antiga convida o peregrino que completa ali o
caminho a cumprir a tradição de queimar as botas e a indumentária que usa
no momento, bem como a descer o promontório e mergulhar no mar ao por do sol. Autores mais liberais e atrevidos advertem mesmo que o banho no mar deverá ser feito sem qualquer roupa, sustentando a tese de que este banho de limpeza do corpo cansado está associada à limpeza de pecados concedida ao peregrino pelo facto de ter encetado e concluído a peregrinação. E, ainda, no facto trivial e pretensamente coerente de o peregrino não possuir roupas uma vez que as acabara de queimar. Foi
cumprida apenas a parte da queima de tshirts usadas na empreitada. De resto,
ofereceram-se os peregrinos um breve tempo de relaxe a mirar o tal mar sem fim,
desde o tal fim da terra, na tentativa de pressentirem um cheirinho
da perspectiva que seria a dos antigos quando ali chegavam e lhes era dado
mirar o mar infindável no qual o sol se desvanecia todas as tardes. Aliás, toda
a Costa da Morte carrega uma dimensão esotérica e mística, assente em numerosas
lendas e cultos antigos, todos eles substituídos no processo de cristianização que se operou sobretudo durante a Idade Média, ou a ele referenciados.
Para além das histórias sobre a Virgem que navegava numa barca de pedra (Muxía), parece que a imagem do Santo Cristo terá dado à praia e originado movimento de grande devoção que ainda hoje perdura; a ira divina terá submergido cidades como Dugium como castigo por os seus mandantes não terem autorizado a sepultura das relíquias santas do apóstolo; na ponta do promontório os fenícios terão erigido um altar ao sol supostamente destruído por Santiago; o monte Pindo seria uma espécie de Olimpo dos celtas, etc.
A mais fantástica, todavia, é a que nos leva a olhar para o céu nocturno estrelado e a imaginar aquela enorme mancha composta por biliões de estrelas, a que alguns chamam Via Láctea, mas muitos preferem ver ali a projecção do Caminho de Santiago apontando precisamente para esta Fisterra.
Carregados com a Muxiana e com a Fisterrana, carregados com os
sentimentos de mais uma extraordinária experiência, carregados com a vontade de
continuar a fazer caminhos, estes, e outros, regressaram estes peregrinos a
casa. Satisfeitos. Limpos de todos os pecados.
Post Scriptum
Um pouco à margem do camiño propriamente dito, ainda 3 notas dignas de
registo.
A primeira vai para a viagem de autocarro entre Fisterra e Compostela:
quase 3 horas. A camioneta da carreira serpenteia por uma série de rias, pára
em muitos apeadeiros, inclui transbordo para outra camioneta da carreira e,
deixa-nos no terminal compostelano obrigando a mais 20 minutos de caminhada até ao albergue. Ou seja, o
peregrino que acabou a sua viagem em Fisterra desde Muxía, foi ao promontório e
regressou, quase 40 km palmilhados, ainda leva com 3 horas dentro de uma
camioneta antes de tomar um duche, vestir roupa lavadinha e deambular um
pouquinho por entre a velha história da velha Compostela.
Chegados à Rua de Preguntório - cá vai a 2ª nota -, já o sol se tinha
amagado lá por debaixo de Fisterra, eis que são estes peregrinos informados de
que não há duche com água quente, devido a avaria da caldeira. Valeu a
motivação militar de alguns, o incentivo de outros, sustentado na tese de que a
água fria é boa para os músculos, mas, sobretudo, a necessidade de se voltar a
sentir aquela sensação de tapar um corpo lavadinho com roupa lavadinha.
Finalmente, 3ª nota, esta positiva: o reencontro do Xoaquim Branco com o
nosso amigo Sergio de Nisa (blogue campus stellae). Foi no Manolo, restaurante habitual, mesmo antes da
partida. A justificação desta referência advém do pormenor de que, contou
Xoaquim, é a uma conversa em Nisa com Sergio que se deve ir buscar um dos embriões
da ideia de se fazer o caminho português desde Castelo Branco. Aliás, Xoaquim e
Matos, já por diversas vezes reivindicaram que, na verdade, eles os dois, e só
eles, têm o percurso feito desde o Crato até Compostela. Não há muitos com este curriculum.
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