segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

INSTANTÂNEOS - II

Ao longe, a personagem já aparentava algo incomum: magra, muito magra, vestida de preto da cabeça (coberta com um lenço), até aos pés (enfiados numas pantufas com visíveis sinais de muito uso). Puxado por um baraço, arrastava atrás de si o chassis daquilo que em tempos terá sido um carrinho de bébé, sobre o qual foi colocado um cartão para servir de base. Qualquer criança tenderia a ver naquela figura a personagem maléfica de uma história qualquer. E, se atentasse nos pormenores, fugiria a esconder-se debaixo da cama: a mesma figura apresentava mãos esquálidas a deixar salientar todos os carpos e metacarpos, unhas ligeiramente compridas e sujas; cabelo grisalho e desgrenhado, dentes em falta e nariz adunco numa face que os anos e as agruras enrugaram em excesso; e os olhos… melhor, o olho que não tinha, tapado por uma espécie de cicatriz por baixo da pestana. Definitivamente, uma bruxa. Má, seguramente. A todo o momento sairiam faíscas das suas mãos que transformariam qualquer criança num salta roscas, enquanto soltava risadas histéricas por entre os dentes cariados. De que era preciso fugir e ir rogar à avó que deitasse a pinga do azeite no prato com água e rezasse a mézinha para contrariar o mau olhado.


Nós parámos. Saudámos:
- Bom dia.
Respondeu uma voz com sotaque cigano:
- Atão bons dias.
Da conversa de circunstância sobre o carrinho e o tempo e o frio que fazia, veio a confissão:
- Vou ali a róbér uns gravatitos para me aqueceri.
- Faz vomecê muito bem, qu’isto está é para ficarmos quedinhos junto ao lume. Não faça como alguns parvos que andam por aí a caminhar pelos caminhos velhos, de manhãzinha cedo e longe de casa.

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