domingo, 10 de dezembro de 2023

INSTANTÂNEOS XXIV

 

                                    Desenho: Paula Marques

A estação ferroviária de Bayonne estava repleta de gente, muitos eram peregrinos a caminho de St Jean Pied de Port para aí iniciarem o Caminho Francês. No meio da Gare, vestindo a farda do SNCF (caminhos de ferro franceses), Monsieur Dupont e Madame Rousseau desdobravam-se a dar informações, orientações, esclarecimentos aos utentes, desempenhando um papel que devia ser tomado como exemplo em qualquer estação movimentada.

Xaime chegou-se a eles para sacar informações sobre a próxima ligação e pergunta, quase sem sotaque:
- Parlez-vous français?
Monsieur Dupont mira o perguntante com semblante sério e  responde com voz grave:
- Non! Russe.

O episódio serviu como prólogo para amena cavaqueira com os simpáticos e prestáveis ferroviários, e teve ponto marcante quando Inserme, que aprecia jogos com a beleza das palavras e dos seus significados, se dirige a Madame Rousseau e com ar de curioso fingido, a provoca:
- Je me demande Madame: peut-on appeler les dames de Bayonne des “bayonnetes”?
Ela riu-se divertida e acompanhou:
- Ah! oui, mais elles ne sont dangereux que lorsqu'elles se mettent en colère…

Ainda em Bayonne, demos com uma montra que ostentava umas frases banais, todas elas a acabar com um impropério muito utilizado pelos franceses.
A mais bonita é capaz de ser aquela que se pode traduzir por:
"Gosto de ti, porra!"





sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

CAMINHO FRANCÊS: ALGUMAS NOTAS GERAIS (fase1)




Projecto (em curso): Caminho Francês

Início: St Jean Pied de Port

Término: Burgos

Etapas: 12

Partida: 03 de setembro de 2023

Chegada: 14 de setembro de 2023

Distância total: 282 km

 

Peregrinos / Caminheiros:

Aníbal Azevedo, Anselmo Cunha, Conceição Pires, Elsa Maia, Fernando Micaelo, Gena Cabaço, Jaime Matos, Joaquim Branco, Manuela Gomes, Nulita Lourenço, Paula Marques, Raul Maia, Teresa Silva.


1. Emoções de primero

2. Duas ou três irrelevantes notas de reportagem

3. Duas ou três relevantes notas sobre cultura e história

4. Notas gerais sobre o Caminho Francês (fase1)


O Caminho Francês é, sabe quase todo o mundo, o mais icónico de todos os Caminhos de Santiago, e a maior parte dos peregrinos começa-o em St Jean Pied de Port.

Grosseiramente, até Burgos o Caminho pode ser dividido em 3 zonas distintas. A primeira, se calhar a mais interessante e bonita em termos paisagísticos alcança Zubiri, na zona pirenaica; a segunda é marcada pelos vinhedos de La Rioja até Najera; finalmente, o planalto (por vezes) monótono de Castilla y León, até Burgos, com excepção das sierras de La Oca e de Atapuerca.

O dia da chegada a St Jean foi molhado. Precisávamos de um primeiro dia seco e fresco para galgar os cerca de 24 mil metros até Roncesvalles. Pois foi o que nos calhou. Um dia fantástico para atacar aquela que, dizem, é a mais dura de todas as etapas do Camino. E é capaz de ser. Se calhar porque se parte da cota 172, trepa-se até aos 1430 metros de altitude durante quase 20 km e, nos últimos 4, baixa-se para a cota 900. Os joelhos e as unhas dos pés não apreciam estas descidas à bruta. Digamos que para cumprir esta etapa é preciso ter “pêtos” e, quem a faz, consegue fazer qualquer uma do Caminho. Precisámos de quase 10 horas para a concluir, mas chegámos a tempo de assistir à missa (alguns) na belíssima igreja do velho mosteiro de Roncesvalles.

No que toca a dureza e alguma dificuldade a requerer cuidados aos caminhantes, são dignos de referência dois pequenos troços. O primeiro surge à chegada a Zubiri. São cerca de cinco quilómetros em piso “especial”, um piso onde apenas as cabras se sentem no seu meio. Este troço apresenta elementos que deverão ser muito interessantes para qualquer geólogo, desafiante para o peregrino, em geral, que tem de caminhar de olhar fixo e atento no pedregoso e perigoso piso (chamemos-lhe assim, para facilitar). É nestas ocasiões que são exigidos três requisitos ao caminhante: bom calçado, sentido de equilíbrio e paciência. Dá ideia que a natureza caprichou ali na geologia, de propósito, para que os peregrinos não se esqueçam que a vida, tal como o Caminho, tem de ser percorrida com cuidado, com preceito, sem pressa.

Foi neste trajecto que demos com uma figura esguia, Francesco era o seu nome, italiano de Firenze, médico (aposentado), 72 anos. Há horas de sorte e este vero italiano teve uma tremenda sorte na hora em que o alcançámos. Caminhava visivelmente debilitado, com passo inseguro, a ameaçar cair a qualquer momento. Ainda por cima, nem sequer tinha qualquer garantia de conseguir leito e duche em Zubiri. Pois que fique registado nos anais que o grupo de solidários lusos lhe arranjaram cama no mesmo albergue e o libertaram do peso da mochila até lá.

O outro ponto “duro” é a descida (são sempre as descidas abruptas que marcam a diferença), desde o Alto del Perdón, muito em cascalho, tipo “piedras rolantes”.

Vencida a pequena subida que sai de Estella, há 2 pontos que merecem referência. O primeiro é La Forja de Ayegui, uma oficina-exposição com a expressão da criatividade de Jésus Angel. Este señor faz autênticas obras de arte na transformação de ferro velho. A segunda, algumas chancas à frente, surge a Fuente del Vino, junto ao Mosteiro de Irache, que nos “obriga” a parar. Parece que nos tempos antigos, os monges beneditinos acudiam com este remédio aos cansados peregrinos que ali aportavam. As Bodegas Irache, actuais proprietárias das santas e abençoadas vinhas assumiram essa tradição acalmando gratuitamente a sede dos modernos peregrinos, com o seu vinho rosado, suave e fresco no paladar. Em média, nos meses mais concorridos, são consumidos cem litros por dia.

La Rioja é terra vitivinícola, região de excelência de produção de vinho em Espanha. Muitos milhares de hectares cobrem aqueles vales abertos e suaves colinas. Uma vez que estávamos em plena época das vindimas, tiveram estes peregrinos a oportunidade de depenicar múltiplas e variadas castas de uvas, tintas e brancas, todas docinhas.

Segue-se o planalto monótono de Castilla. As vinhas dão lugar aos extensos campos de cereal e girassol, árvores raras, sombra apenas a que vinha do céu emprestada por nuvem caridosa, menos na sierra de la Oca, e depois Atapuerca que anuncia a antiga e leal cidade de Burgos.