sexta-feira, 26 de agosto de 2022

INSTANTÂNEOS XXII


Peregrino que é peregrino janta frugal e deita-se cedo, que no dia seguinte é dia de trabalho árduo. Ele sabe bem que não é aconselhável exagerar nas proteínas animais, deve ser contido nas calorias etílicas. Bastas vezes, admite-se (assumindo aquela posição estereotipada do baixar a cabeça e olhar de lado), estes peregrinos prevaricam. Desavergonhadamente.

Com a sensatez que o caracteriza e define, Xaime contratou uma sopa para cada uma das duas noites que dormimos em Silleda. Para a história será secundariamente relevante que as ditas pudessem ser classificadas como tal. Na verdade, aquilo que a senhora galega nos apresentou, com toda a simpatia e boa vontade não pode, nunca por nunca, entrar na categoria de sopa, no exigente padrão português/beirão do que é um caldo. Vá lá! Poderá aceitar-se que são da família. Afastada.

A primeira consistia num caldo de água quente no qual boiavam, em cada prato, meia dúzia de pequenos cubos de nabo, uma dezena de pedaços de alho francês cortado grosso e três folhas de espinafre esfarripadas. Não! Não tinha base de courgete e/ou chuchu e/ou abóbora e/ou cebola e/ou alho e/ou cenoura e/ou batata… nada! Tão pouco foi adicionado um fio de azeite na fervura. Só faltava estar ensossa. E estava. Ponto a favor: aconchegadinhos com ela, o descanso nocturno parece que até foi de fracos roncos.

Na segunda noite, fomos brindados com uma espessa massa de cenoura – simplesmente cenoura, sem absolutamente mais nada - daquelas que quase aguenta a colher espetada. Os nossos olhos, consta, ficaram exageradamente bonitos.

Mas o mais relevante para este instantâneo veio com o episódio do pagamento. Para evitar a taxa de levantamento no ATM, a nossa Manela pediu que lhe entregássemos a contribuição de cada um, e ela pagaria a totalidade com o seu cartão.

Já todos tínhamos abandonado o estabelecimento a caminho do albergue quando os últimos reparam que a simpática galega fazedora de “sopas” especiais vem apressada e ar aflito no nosso encalço. Visivelmente incomodada, pergunta quem é que ia pagar a conta.

Rapidamente e com a argúcia de quem tem o bandulho cheio de pasta de cenoura se dá pela mancada: desconhecendo a combinação e porque a Manela não se lembrou de a informar, a senhora tinha debitado apenas a parte dela na sua maquineta.

segunda-feira, 27 de junho de 2022

CAMINHO INTERIOR PORTUGUÊS 3/3

 

CAMINHO INTERIOR PORTUGUÊS 3/3

 


CAMINHO INTERIOR PORTUGUÊS: Peso da Régua – Santiago

Depois da JORNADA 1/3 e da JORNADA 2/3a mochila voltou para as costas disposta a completar o projecto iniciado em 2019.

2022 - 3/3: Ourense - Compostela

Etapa 1 -29/05/2022

Ourense – Cea

26,6 km

Média: 4,3 km/h

Etapa 2 – 30/05/2022

Cea – Santo Domingo

20,8 km

Média: 4 km/h

Etapa 3 -31/05/2022

Santo Domingo – Silleda

27,6 km

Média: 4,3 km/h

Etapa 4 -01/06/2022

Silleda – Ponte Ulla

22,8 km

Média: 4,3 km/h

Etapa 5 -02/06/2022

Ponte Ulla - Compostela

24 km

Média: 4,2 km/h


 Caminhantes: 

Aníbal Azevedo, Anselmo Cunha, Elsa Maia, Felizarda Lourenço, Fernando Micaelo, Gena Cabaço, Jaime Matos, Joaquim Branco, Manuela Gomes, Nulita Lourenço, Paula Marques, Raul Maia, Rita Crisóstomo, São Pires, Teresa Silva.




A jornada tem início oficial na estação da CP de Castelo Branco onde as tropas agrupam. Moral em alta, notoriamente. Pa
ra chegar a Ourense foi agradável fazer a linha da Beira Baixa até ao Entroncamento com vistas para o Tejo quase sempre às 9 horas, a linha do Norte com alguns vislumbres do mar ali para as bandas de Espinho, o comboio celta até Vigo e finalmente uma espécie de linha do Minho galega que acompanha o rio até que deixa de funcionar como fronteira, passado Melgaço.

Em Ourense pontifica aquela magnífica Ponte Maior sobre o rio Minho. Ourense é também terra de termas. A água brota a uns escaldantes 30 graus (ou mais) e, nas que são públicas, algum povo – corajoso e foito – mantém-se imerso em pequenas piscinas na esperança de assim encontrar cura para as maleitas da artrose. Para a história desta jornada fica registado, também, o pormenor quase insignificante dos 3 peregrinos do grupo, que fizeram questão de ir “aquecer” para o Camiño durante cerca de 5 km só para experimentarem a dita água termal escaldante nas termas da “Chavasqueira”, indiferentes à indicação de um termómetro exterior onde as luzinhas desenhavam 43 graus célsius, por volta das 4 da tarde. O lugar não estava muito bem arrumado e inclusivamente havia espalhados alguns gradeamentos amarelos daqueles que as autoridades utilizam para vedar o acesso a determinados espaços. Parece que era o caso, segundo informaram 2 galegos encostados nas paredes do tanque, mas o povo, continuaram eles, é soberano e porque ordena mais do que tudo, não ligou a tal ditatorial restrição e instalou-se a bel-prazer. “Aqui nada funciona”, esclareceram ainda os ourensenses galegos, “estes políticos san unos hijos de puta”. O discurso continuou com opiniões no mesmo registo, aliviando-nos um pouco daquela nossa sensação de que só nosso país é que os políticos são isto e aquilo.

Estava um pouco mais fresco na manhã seguinte quando atravessámos a Ponte Maior de Ourense para começar os primeiros 8 quilómetros em modo de subida, inevitável para transpormos a orografia da bacia hidrográfica do Minho. Já a descer, numa ponte sobre uma pequena ribeira, fresca e sombreada onde se fez paragem técnica para reposição de líquidos e arrefecimento corporal, fomos apanhados por uma americana de Chicago, região plana - salientou - sem subidas nem descidas, nada parecido com o que ela acabara de fazer. Caminhava sozinha, com as suas próprias motivações.





O albergue em Cea estava mais preenchido do que o previsto, considerando que apenas nos cruzámos com a americana. Afinal, já lá estavam instalados alguns espanhóis, 2 israelitas, 2 alemães, 3 italianos e outros a quem não houve oportunidade de perguntar de onde vinham. Sem surpresa, os mais comunicativos foram os italianos, bicigrinos que estavam a fazer a Via de la Plata, desde Sevilha.

A nota mais saliente da noite, no entanto, vai para o concerto roncal oferecido por 4 prodigiosos instrumentistas. As partituras tocadas foram várias, em diferentes tons e volumes, ao longo de muitos quartos de hora, para deleite dos apreciadores que se mantiveram despertos e atentos.

A etapa entre Cea e Santo Domingo foi tranquila, com pequenos troços de dificuldade alta média, temperatura amena, sem chuva, a contrastar com o dia seguinte, destino Silleda, em que as capas e ponchos se justificaram durante boa parte do trajecto. Ainda assim, este troço é extremamente agradável, percorrendo extensos bosques onde o tapete de fetos fazia conjunto e harmonia com os frondosos castanheiros e carvalhos, paraíso para os numerosos melros de bico amarelo que ali se sentirão seguramente muito felizes.

É preciso realçar a passagem pela Ponte Taboada sobre o rio Deza, local onde os peregrinos têm oportunidade de pisar as mesmas pedras que outros pisaram há mais de 1000 anos atrás.

À saída da Silleda caia água que Deus a mandava e, teimosinha, acompanhou-nos durante duas horas. Vá lá que o cenário se mantinha de conto de fadas, por entre bosques autóctones abundante em verdes de todas as matizes. A meio, eis que surgiu abrigo no albergue Casa das Leiras, gerido pelo italiano Andrea que ficou visivelmente feliz com a paragem para breve secagem e chupitos daqueles 15 encharcadinhos. Muito palrador e simpático, mereceu o sketch rápido que o nosso Micaelo lhe esboçou à pressa (passe a redundância), mas a retratar os traços principais da ponte Taboada.


A descida final para a Ponte Ulla é bastante pronunciada, verdadeiro teste para os joelhos mais gastos. À chegada, interacção com 3 heróis, um italiano, cinquentão, rodas baixas e careca, um canadiano, trinta e poucos, e um austríaco, sessentas e tais, bigodinho tirolês. Os dois primeiros haviam partido de Sevilha, o tirolês de Tarifa, ou seja, este senhor contabilizava mais de 1200 quilómetros naqueles pés. O canadiano tinha para contar que apanhou o covid em Salamanca que o obrigou a recolher-se num hotel durante uma inteira semana, impedindo-o de ir tentar reconhecer la rana de la suerte, tão pouco pôde combater o calor com uma caña na magnífica plaza mayor de Salamanca.

No albergue O Cruceiro conseguimos, finalmente, ter acesso a um honesto caldo galego. Que saudades de um bom caldo galego! aquela água turva ligeiramente salgada onde cozeu um naco de presunto rançoso, mais uns ricos gravanzos e as famosas couves galegas, transportando-nos para a sopa da nossa avó em dia de matança. Sensibilizada com os nossos elogios, a patroa fez questão de ir à cozinha e tornar a encher a terrina para que ninguém ficasse com vontade.

No final, já liquidada a conta, a funcionária Sónia, jovem galega, rendida à nossa simpatia – e charme de alguns – apresentou-se com uma garrafinha de licor de hierbas e outra de licor de café e obrigou os pobres peregrinos à degustação de 2 generosas doses de cada. Justificou: os peregrinos mais simpáticos – e charmosos – que lhe aparecem ali são os portugueses. Os piorzinhos e mais difíceis de aturar: os franceses e… os espanhóis. Obviamente, estes nunca têm direito a oferta de licor de hierbas ou de café.



O último troço correu tranquilo, sem chuva, já em clima de expectativa da chegada. Referência especial para o casal de belgas, 76 e 75 anos, que caminhavam lentos mas despreocupados puxando cada um seu carrinho com rodas, esquema que já tinham utilizado para fazer o caminho português desde o Porto. Eles também devem ter lido a placa em Susana que nos recordava um dos elementos cruciais do espírito do Camiño: 

“No corras! Que donde tines que llegar es a ti mismo” (retirado de um poema de Juan Jimenez)

Quis ele saber num espanhol arrevezado: “Sois portugueses? Aqui solo para nosotros, los portugueses son más amistosos que los espanholes”. Se o tivéssemos ali à mão, era certinho que partilharíamos um chupito de hierbas.

A entrada no casco histórico de Compostela foi feita pela Rua do Franco, a mesma do caminho português. A multidão aclamou-nos até ao Obradoiro. 

As emoções acumuladas encontram sempre ali, no ponto zero frente ao Pórtico da Glória, o momento adequado para se manifestarem. É ali, e naquele momento, que a carga emocional do Camiño se abate sobre nós e, não raro, é descarregada em cloreto de sódio na forma de uma lágrima. 

O que nós gostamos destas emoções!




______ " _____