sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Da nossa porta a Santiago - Impressões III - As noites

Caminhar por gosto…também cansa.

Quem passa metade do dia ao sol, à chuva, ao vento, a pisar terra batida, gravilha, sarrisca, pedras soltas, seixos, alcatrão, lama, vencendo subidas e descidas de inclinações várias, com pesos variáveis às costas, ainda que nisso consiga obter prazer … cansa. Na sua acepção mais radical, estamos perante um caso de masoquismo. Todavia, podemos confortar-nos com a ideia de que é um masoquismo "saudável". 

O espírito, indiferente à dor, só pensa na glória. Nessa glória que se pressente no fim de cada etapa, que se alimenta de horizontes abertos, da paleta de cores da natureza, das piadas suscitadas pelas situações, dos sabores dos cardápios, das partilhas de casos de vida, dos contactos com os autóctones.

O corpo, esse, pede descanso. E a noite terá sido inventada para isso.


As noites dos peregrinos contêm sempre alguma agitação. Quando supostamente, seria necessário ter uma noite de descanso para permitir a recuperação, isso é conseguido apenas por alguns: os que demoram menos de 2 minutos a adormecer, e passam como foguetes para a fase do ronco.

Os outros, a maioria, os que ficam algum tempo a fazer a revisão da jornada, sujeitam-se. A sua noite, que devia ser de recuperação pelo sono - eventualmente pelo sonho - transforma-se em pesadelo.

Foi na etapa XV que se fez referência a esta problemática das noites dos peregrinos e a sua íntima associação à roncopatia, tendo-se recorrido a Mestre Aquilino. Justifica-se a represtinação:

“O diabo é que ele ressonava mais alto, variado e plangente que o órgão na vigília da Paixão. Fosse obra de esturrinho, com semiobstrução das fossas nasais, o certo é que dentro daquelas ventas monásticas ora mugiam dez gaitas de foles galegas, ora assobiava a gaitinha de palha mofareira que os rapazes fazem do trigo a apendoar. A partitura entrecortava-se de solos que estrugiam pelo claustro e deviam, transbordando para o exterior, extasiar céu e terra. Quando no decorrer dum piano pianíssimo, que também tinha dessas variações a trompa prodigiosa, Luís Azevedo conseguia pregar olho, de repente soltava ela um larghetto, com notas de oboé e rabecão, e lá se ia o regalado soninho. Às seis horas da manhã, quando começou a luzir a claraboia e um cochicho veio para os loureiros soltar a sua solfa, ainda andava ele aos tombos com o travesseiro.”


Se bem que, dizem-nos as estatísticas, a roncopatia é um problema que afecta mais de metade da população adulta e em particular os homens, a verdade é que as suas manifestações assumem figurinos muito diversos, quase se diria, muito ricos, se se importarem para a análise indicadores como o volume, o timbre, a duração do som, ou mais apropriadamente, dos sons.

Num exercício puramente especulativo sem qualquer base científica validada, mas, ao menos, sustentado na empiría desta jornada (e sob inspiração aquiliana, admite-se), inventaram-se duas tipologias, pretendendo classificar os roncadores e os que, também o sendo, passam menos bem as suas noites.

Comece-se pela tipologia destes últimos:

1. os bolcheviques, declaradamente à esquerda no expectro ideológico são, naturalmente, os mais inconformados, conhecidos por adoptarem medidas de contestação que podem atingir as raias da agressividade, sendo que a mais frequente é a de fazer sentir ao roncador que existem mais almofadas para além da sua;
2. os intelectuais de esquerda, pegam no livrinho, no equipamento portátil de som e vão sentar-se no sofá do espaço comum a adiantar páginas, e, desprezando todas as regras da ergonomia, adormecem assim mesmo, retomando a posição de deitado na cama meia hora antes da hora de levantar, invectivando com veemência no dia seguinte, porém, os responsáveis pelas suas olheiras;
3. os mencheviques, posicionados no centrão, não são adeptos do uso da violência ou de outra qualquer medida mais viril, preferindo recorrer a métodos alternativos como sejam, por exemplo, o de fazer determinados sons com a boca, na esperança vã de que isso vá reduzir o ruído da vibração dos tecidos na respiração do roncador;
4. Os laisser faire laisser passer, liberais por instinto, acreditam que as forças antagónicas em competição, tenderão para o equilíbrio e, mais tarde ou mais cedo, acabarão inevitavelmente por adormecer;
4. os teimosos, tendencialmente conservadores, incomodados com a situação mas resistentes à mudança, mantêm-se firmes e hirtos na horizontal, ocupando o tempo a explorar todas as posições do seu corpo estirado no colchão, enquanto se dedicam a contar um número infinito de ovelhas que imaginam a saltar uma vedação, esperando que o cansaço vença, acabando por adormecer meia hora antes da hora de levantar;
5. os abstencionistas, alheios a tudo, confiantes apenas na ajuda de uma qualquer droga indutora do sono.

Os roncadores, esses, podem arrumar-se em outras tantas categorias:

1. Os concertistas: recorrem preferencialmente aos metais e madeiras graves, e, dentro destes, exibem uma predilecção inexplicável pela tuba, pelo trombone e pelo contrabaixo; a espasmos, mas por breves instantes, concedem a entrada do fagote, do oboé, e mesmo da gaita de foles;
2. os sinfónicos: recorrem aleatoriamente a todos os instrumentos, desde que da classe dos aerofones ou membranofones, variando apenas entre o allegro, o andante, o adagio e o largo
3. os missalistas, habitualmente na variante réquiem, respeitadores do Kyrie e do Credo, mas amiúde boicotadores do verdadeiro espírito do Sanctus e do Agnus Dei; os mais hereges chegam a intrometer uma gaita de foles;
4. os sonatistas: modestos e poupados, recorrem apenas a dois ou três instrumentos, mas sempre de entre o violoncelo, a trompa, o saxofone ou o oboé;
5. Os serenatistas: adeptos dos metais e das madeiras mais leves, hesitam entre a trompa e o fagote, ocasionalmente concedem um violoncelo. 


Apenas para memória futura, foi democraticamente estabelecido o ranking dos roncadores:

1. Zé Manel Machado (por unanimidade e aclamação)

2. Fernando Gaspar
3. Carlos Matos
4. Conceição Branco, Anselmo
5. Raul Maia, Jaime Matos
6. Xoaquim Branco
7. Piedade
8. Elsa Maia
9. Benvinda Monteiro, Paula Marques, Fernando Micaelo













Sem comentários:

Enviar um comentário