CAMINHOS DO FIM DA TERRA
Caminhantes:
Anselmo, Benvinda Monteiro, Conceição Pires, Elsa Maia, Fernando Micaelo, Jaime Matos, João Valente, Joaquim Branco, José Manuel Machado, Paula Marques, Raul Maia.
Anselmo, Benvinda Monteiro, Conceição Pires, Elsa Maia, Fernando Micaelo, Jaime Matos, João Valente, Joaquim Branco, José Manuel Machado, Paula Marques, Raul Maia.
ETAPA I: Santiago – Negreira, 24,2 Km
07/06/2015
07/06/2015
Novo objectivo: palmilhar o troço do camiño mais
ancestral, aquele que, supostamente, seria a peregrinação pré cristã até ao “fim
da terra”.
Estão razoavelmente identificadas todas as condicionantes que conduziram ao
surgimento do movimento peregrinatório a Compostela, e em especial a estas
terras de Muxía e Fisterra, quer na dimensão lendária quer histórica. Do saco
das lendas saem as histórias que envolvem a barca de pedra, a da Virgem que se
lhe apresenta a incentivá-lo à evangelização e a do transporte do seu corpo
decapitado até Padrón, as que garantem que a pedra d’Abalar é a barca, e a
pedra dos Cadris é a vela onde viajou a virgem; da bolsa da história saem as
teorias, verosímeis, da cristianização de locais e ritos pagãos, essencial à
difusão e reforço da fé cristã, mas também o aproveitamento político do
movimento de expansão do cristianismo face às investidas muçulmanas. Não deve
ser por acaso que a sepultura do apóstolo é “descoberta” no seculo IX, vinham
os mouros a subir a Península Ibérica a impor outro deus e outra religião.
Admissível é igualmente a tese da existência de movimentos pré-cristãos
associados à veneração de locais místicos, onde existiam pedras que se moviam,
mais pedras com propriedades curativas, mais a percepção do fim da terra, mais
o culto ao sol, mais o esoterismo e romantismo que gostamos e precisamos de
atribuir às antigas tribos celtas, suevas, etc.
Se calhar, o que nos impeliu a mais uma aventura neste trilho que
oficialmente faz parte integrante do camiño vem destas
dimensões mística, lendária, histórica, cultural e religiosa (para alguns);
também há-de sustentar-se no quadro motivacional de cariz mais individual que
advém da oportunidade de melhorar o auto-conhecimento através da introspecção e
da interação com os companheiros de jornada, bem como com a multidão de
peregrinos que comungam o espírito do camiño;
e ainda, deverá inspirar-se naquela sensação algo masoquista de obter
satisfação e sentir orgulho inerentes ao sofrimento físico inevitável quando se
caminha num território difícil mas belo, para se chegar a um destino que se
pressente efectivamente místico.
A estratégia operacional e logística foi previamente delineada e seguiu o
modelo já testado e bem sucedido em anteriores jornadas: viagens de ida e volta
em minibus alugado, pernoitas em albergues, alimentação em unidades locais. As
tropas reuniram-se no terminal rodoviário de Castelo Branco à uma da tarde, às
8 já estávamos a arrumar as mochilas no alberge “o ultimo sello”, ali a 200
metros do Obradoiro, na Rua do Preguntório. Era dia de final europeia mas,
curiosamente, à hora do jogo, via-se mais gente a degustar pinchos e Estrella
Galicia do que fixados na televisão. A vitória do Barcelona não resultou em
euforias com desfiles de carros a apitar, nem manifestações de milhares de
adeptos na praça do Obradoiro. Tudo tranquilo.
Dois contactos a registar logo à chegada: a simpática sexagenária do
Colorado que connosco partilhou a camarata e que nos informou já ter realizado
a viagem a Fisterra resumindo-a num “very nice”; o casal de argentinos que
concluíram de bicicleta o caminho francês. Ela jurou-nos que iria passar muito
tempo até voltar a montar uma bicicleta. Para a animar, partilhámos com eles
uma taça de vinho verde e uma talhada de queijo de ovelha de Alcains sobre um
naco de pão da Zebreira, proporcionando-lhes a descoberta de um cheiro e sabor
completamente novos. Deu-nos a sensação que ficaram impressionados.
A noite de Santiago ofereceu-nos um excelente aperitivo: vários artistas de
rua nas imediações da catedral, a tuna compostelana dava um pequeno concerto
nas arcadas do Paço Raxoi mesmo em frente à catedral, mas o que nos fixou foi o
arraial que estava armado na praça de S. Martinho, apinhada de gente aos saltos
e a acompanhar o trio musical de cinquentões que ia passando em revista
reportório dos anos 60 e 70. Naturalmente, a hora de deitar foi
significativamente atrasada. Acresceu, que até cerca das 3 da manhã, aos
aposentos chegavam nitidamente audíveis as vozes de numerosos noctívagos
foliões, a falar, a rir, até a cantar cantigas desconhecidas mas claramente em
desafinação. O boicote ao sono consumou-se com os ruídos produzidos pelos
motores dos veículos dos serviços de limpeza. Ou seja, em bom português, quando
não é do cú, é das calças: o roncador mor Zé Manel presenteou-nos com uma noite
aceitável, em contrapartida, tivemos direito a uma noite de insónia forçada por
via da movida compostelana. É a vida! Se calhar, é a sina do peregrino.
O toque de alvorada soou logo a seguir e às 6 da manhã já estávamos a passar novamente pela Obradoiro, embicados à Rua das Hortas e a iniciar oficialmente a jornada em direcção a Negreira. Temperatura amena, conversa descontraída e animada até Água Pesada. Aqui, por volta do km 11 inicia-se um trilho de mais de 3 quilómetros onde o esforço para contrariar a gravidade obriga a maior concentração, amenizada pela frescura do frondoso e sombreado bosque de castanheiros e carvalhos, e dos banquinhos para descanso que surgem a intervalos regulares.
Paragem técnica em Ponte Maceira (sec XIV), num local aprazível na margem esquerda do rio Tambre, logo aproveitado pelos nossos 3 sketchers para o oportuno registo nos cadernos gráficos.
Chegada a Negreira e ao albergue S. José às 2 da tarde, uma hora excelente
para se chegar, sobretudo se se pretende passar o resto da tarde a realizar
trabalho de campo, utilizando a técnica da observação participante, em
descontraído convívio com os autóctones. Na esplanada do restaurante “A Vila”,
calhou darmos logo com a portuguesa de Nelas Maria da Conceição casada com o
galego Rafael Gonzalez, filho de Maruja. Rafael é comercial de uma empresa de
madeiras e mobiliário com unidades em Portugal, designadamente em Nelas, mas
fez questão de sublinhar que não foi o interesse comercial que levou a que
Maria da Conceição abandonasse a bela vila de Nelas: foi mesmo amor. Na mesa ao
lado, a germânica Helga, 65 anos, contou que tinha feito o caminho entre León e
Santiago e partilhava agora os nossos trilhos, mas o mais extraordinário que
nos confidenciou foi que anda nisto desde 2007, caminhando cerca de 500
quilómetros por ano, tendo já percorrido praticamente todos os caminhos que da
Alemanha para cá vêm dar a Compostela.
O trabalho de campo, por exclusiva responsabilidade de Rafael e amigos,
prolongou-se quase até às 9 da noite que na Galiza ainda tem a mesma luz que em
Portugal. Os temas iam sendo abordados consoante a curiosidade científica de
cada um, mantendo-se apenas o acompanhamento privilegiado das Estrella Galícia
1906 Reserva Especial e os pratos de Raxo – lombo de porco cortado em cubos,
previamente macerado durante 8 horas, temperado com alho picadinho, salsa
muita, oregãos e pitada de pimentão, tudo cozinhado em frigideira com fio de
azeite e abundantemente regado com vinho branco. Uma iguaria que todos
classificaram de 5 estrelas, ou, se quisermos empregar uma expressão
tipicamente galega, estava caralhudo.
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