quarta-feira, 3 de abril de 2019

INSTANTÂNEOS - XIX


Desenho: Fernando Micaelo

Um estigma é uma espécie de cicatriz, uma espécie de carimbo, uma espécie de label (perdoe-se o anglicismo) que se associa a uma pessoa, com caracter duradoiro.
A sociedade é pródiga na categorização – em regra acompanhada de uma certa marginalização social - de alcoólicos, drogados, delinquentes, criminosos, ciganos, homossexuais, prostitutas, etc.

O estigma de I. não é nenhum destes.

Com base em alguns episódios – estatisticamente irrelevantes, segundo o próprio – foi-lhe aplicado o carimbo de “esquecido”. Consta que há vários albergues no Camiño com espólio enriquecido por toalhas, calções, cuecas, meias, pijama, t-shirts, e até uma escova de dentes que ele terá deixado ficar para – justifica ele já longe dos sítios – “alguém que precise” (excepção para a escova de dentes).

O carimbo estigmatizante de “distraído” ou de "esquecido" ficou quase irremediavelmente gravado a ferro em brasa nas suas nalgas com a cena ocorrida ali mesmo na Praza Cervantes em Compostela, mais precisamente, no Manolo.

Eis, resumidamente, a história.

Depois de cumprido o caminho Primitivo (desde Lugo) durante os 5 dias anteriores, o dia era para partir de regresso a casa, logo após almoço na Casa Manolo. A manhã, como habitualmente, tinha sido aproveitada para comprar uns regalos para a família e amigos. À conta da meia dúzia de cañas e outros tantos pinchos que ele (e outros) embrulharam nos intervalos das lojas, I. precisou de apressar a chegada ao Manolo a fim de responder aos alertas que o seu organismo lhe enviava insistentemente há algum tempo.

Carregado com 3 sacos contendo 2 pacotes de caprichos de Santiago, uma tarta Santiago, 2 camisetas do Camiño, um botafumeiro em miniatura, uma garrafa de licor de hierbas e uns brincos em azabache, foi-se direitinho aos sanitários, enquanto o grupo se sentava no piso inferior. À saída, já o mundo lhe aparecia com uma cor mais luminosa, reparou que – distraidamente, claro – tinha utilizado as instalações reservadas às damas. Preocupado em evitar qualquer engulho, acelerou o passo para escapar dali e juntar-se ao grupo que já escolhia o prato de primera e de segundo.

Foi já depois de ter degustado os pimientos padrón e a meio da chuleta de ternera grelhada que I. se levanta repentinamente e, com ar consternado, galga a escadaria 3 a 3 degraus, deixando todo o grupo a especular sobre os motivos de tamanha aflição. Reapareceria dois minutos depois, sorrindo, com 3 sacos de compras. Alguém – uma señorita, presume-se – tinha tido a gentileza de os recolher do cubículo sanitário feminino onde os encontrara e entregado a Don Manolo.

Obrigado a contar toda a história, Paula, atenta, não deixou passar o “pormenor”:

- E Don Manolo não disse nada sobre teres utilizado a casa de banho das senhoras?

Aí, I. acabou por confessar que introduzira uma personagem na história, ausente a mais de 500 quilómetros:

- Eu disse-lhe que foi a minha mulher que se tinha esquecido dos sacos.


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