sábado, 18 de julho de 2015

Diário de Caminhada - Caminhos do fim da terra - Etapa IV

CAMINHOS DO FIM DA TERRA

Caminhantes:

Anselmo, Benvinda Monteiro, Conceição Pires, Elsa Maia, Fernando Micaelo, Jaime Matos, João Valente, Joaquim Branco, José Manuel Machado, Paula Marques, Raul Maia.


ETAPA IV – Muxía - Fisterra
10/06/2015




Naquele tempo, julgava-se que o cabo Fisterra era a ponta mais ocidental da Europa, o local onde a terra acabava e o mar sem fim começava. Havíamos de ter oportunidade de esclarecer alguns peregrinos desactualizados, e apontar o cabo da Roca como o ponto mais ocidental do continente europeu. Na hora, não houve discernimento para tal, mas teríamos feito um figurão se a esses mesmos peregrinos exibíssemos que em matéria de fim da terra e começo do mar, nós, se calhar melhor que ninguém, também podemos falar d’alto, e ilustrássemos assim (com a devida vénia ao galáctico Camões):

"Já a vista pouco e pouco se desterra
Daqueles pátrios montes que ficavam;
Ficava o caro Tejo, e a fresca serra
De Sintra, e nela os olhos se alongavam.
Ficava-nos também na amada terra
O coração, que as mágoas lá deixavam;
E já depois que toda se escondeu,
Não vimos mais enfim que mar e céu

Até Fisterra, sabiamo-lo, só encontraríamos um local para parar e abastecer: Lires. Pressente-se a proximidade do mar, mas só o veríamos à vista da enorme baía dominada pelo imponente Monte Pindo. O trajecto é agradável, propício a amenizar a fadiga do 4º dia consecutivo de caminhada, sobretudo nos trilhos estreitos bordejados por bastos e verdejantes fetos e ensombreados por frondosos carvalhos e eucaliptos empinados.






A espaços, ocorria o cruzamento com os muitos peregrinos que optaram por realizar o caminho a terminar em Muxía. No mesmo sentido que o nosso, destaque para as 4 jovens japonesas que mereceram a nossa simpatia e admiração, não só porque se exibiam sempre sorridentes como é do seu perfil estereotipado, mas também porque caminhavam há 45 dias seguidos. Depois de todo o caminho francês, ei-las a completar o circuito até Fisterra. Abona a favor, o facto de serem relativamente secas de carne, logo mais leves.






Em Fisterra, localidade, corremos a repor os níveis com duas canecas das grandes de cerveja com limão, mesmo antes de atacarmos o istmo de mais de 3 km até ao promontório sagrado, sabendo que a viagem era de volta atrás.

A literatura antiga convida o peregrino que completa ali o caminho a cumprir a tradição de queimar as botas e a indumentária que usa no momento, bem como a descer o promontório e mergulhar no mar ao por do sol. Autores mais liberais e atrevidos advertem mesmo que o banho no mar deverá ser feito sem qualquer roupa, sustentando a tese de que este banho de limpeza do corpo cansado está associada à limpeza de pecados concedida ao peregrino pelo facto de ter encetado e concluído a peregrinação. E, ainda, no facto trivial e pretensamente coerente de o peregrino não possuir roupas uma vez que as acabara de queimar. Foi cumprida apenas a parte da queima de tshirts usadas na empreitada. De resto, ofereceram-se os peregrinos um breve tempo de relaxe a mirar o tal mar sem fim, desde o tal fim da terra, na tentativa de pressentirem um cheirinho da perspectiva que seria a dos antigos quando ali chegavam e lhes era dado mirar o mar infindável no qual o sol se desvanecia todas as tardes. Aliás, toda a Costa da Morte carrega uma dimensão esotérica e mística, assente em numerosas lendas e cultos antigos, todos eles substituídos no processo de cristianização que se operou sobretudo durante a Idade Média, ou a ele referenciados.



Para além das histórias sobre a Virgem que navegava numa barca de pedra (Muxía), parece que a imagem do Santo Cristo terá dado à praia e originado movimento de grande devoção que ainda hoje perdura; a ira divina terá submergido cidades como Dugium como castigo por os seus mandantes não terem autorizado a sepultura das relíquias santas do apóstolo; na ponta do promontório os fenícios terão erigido um altar ao sol supostamente destruído por Santiago; monte Pindo seria uma espécie de Olimpo dos celtas, etc.

A mais fantástica, todavia, é a que nos leva a olhar para o céu nocturno estrelado e a imaginar aquela enorme mancha composta por biliões de estrelas, a que alguns chamam Via Láctea, mas muitos preferem ver ali a projecção do Caminho de Santiago apontando precisamente para esta Fisterra.





Carregados com a Muxiana e com a Fisterrana, carregados com os sentimentos de mais uma extraordinária experiência, carregados com a vontade de continuar a fazer caminhos, estes, e outros, regressaram estes peregrinos a casa. Satisfeitos. Limpos de todos os pecados.



Post Scriptum

Um pouco à margem do camiño propriamente dito, ainda 3 notas dignas de registo.

A primeira vai para a viagem de autocarro entre Fisterra e Compostela: quase 3 horas. A camioneta da carreira serpenteia por uma série de rias, pára em muitos apeadeiros, inclui transbordo para outra camioneta da carreira e, deixa-nos no terminal compostelano obrigando a mais 20 minutos de caminhada até ao albergue. Ou seja, o peregrino que acabou a sua viagem em Fisterra desde Muxía, foi ao promontório e regressou, quase 40 km palmilhados, ainda leva com 3 horas dentro de uma camioneta antes de tomar um duche, vestir roupa lavadinha e deambular um pouquinho por entre a velha história da velha Compostela.

Chegados à Rua de Preguntório - cá vai a 2ª nota -, já o sol se tinha amagado lá por debaixo de Fisterra, eis que são estes peregrinos informados de que não há duche com água quente, devido a avaria da caldeira. Valeu a motivação militar de alguns, o incentivo de outros, sustentado na tese de que a água fria é boa para os músculos, mas, sobretudo, a necessidade de se voltar a sentir aquela sensação de tapar um corpo lavadinho com roupa lavadinha.

Finalmente, 3ª nota, esta positiva: o reencontro do Xoaquim Branco com o nosso amigo Sergio de Nisa (blogue campus stellae). Foi no Manolo, restaurante habitual, mesmo antes da partida. A justificação desta referência advém do pormenor de que, contou Xoaquim, é a uma conversa em Nisa com Sergio que se deve ir buscar um dos embriões da ideia de se fazer o caminho português desde Castelo Branco. Aliás, Xoaquim e Matos, já por diversas vezes reivindicaram que, na verdade, eles os dois, e só eles, têm o percurso feito desde o Crato até Compostela. Não há muitos com este curriculum.

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