segunda-feira, 23 de outubro de 2023

CAMINHO FRANCÊS (1) - DUAS OU TRÊS RELEVANTES NOTAS SOBRE CULTURA E HISTÓRIA

         Desenho: F. Micaelo


Projecto (em curso): Caminho Francês

Início: St Jean Pied de Port

Término: Burgos

Etapas: 12

Partida: 03 de setembro de 2023

Chegada: 14 de setembro de 2023

Distância total: 282 km

 

Peregrinos / Caminheiros:

Aníbal Azevedo, Anselmo Cunha, Conceição Pires, Elsa Maia, Fernando Micaelo, Gena Cabaço, Jaime Matos, Joaquim Branco, Manuela Gomes, Nulita Lourenço, Paula Marques, Raul Maia, Teresa Silva.


1. Emoções de primero

2. Duas ou três irrelevantes notas de reportagem

3. Duas ou três relevantes notas sobre cultura e história

4. Notas gerais sobre o Caminho Francês (fase1)

                                                

                                                        Desenho: Paula Marques

Primeira e mais relevante nota: é impossível fazer o Caminho sem tropeçar no magnífico património histórico, sobretudo religioso, resultado, entre outros fatores, do vigor, da estratégia e, principalmente, dos recursos à disposição da Igreja Católica Apostólica Romana em Espanha. Não pode o peregrino deixar de ficar impressionado com a quantidade e grandiosidade das igrejas e catedrais que pontificam em todas as cidades e pueblos por onde o Caminho segue. Quase que incomoda ver tamanha monumentalidade e imponência exterior, assim como a opulência, a riqueza artística e a diversidade estilísticas no interior, em aldeias que nem sequer são de grande dimensão.

E se há património, há história, há cultura.

   Desenho: Nulita Lourenço (Puente La Reina)

Para a nossa história, selecionemos então duas ou três relevantes notas sobre cultura e história locais desta nossa jornada, a primeira, no Caminho Francês.

Desde logo, St Jean Pied de Port. Esta ville, actualmente francesa, mas que já foi de Navarra e, conserva a cultura e língua basca, ocupa uma posição estratégica para quem, ao longo de muitos séculos, quis atravessar o Pirinéus.

Faltará sempre serenidade ao peregrino para apreciar convenientemente a riqueza patrimonial do local, boicotado pelo ambiente festivo, e pela adrenalina associada à expectativa de começar o caminho bem cedinho na manhã seguinte. Quem resiste e se mantém sereno – como estes lusos albicastrenses – sempre arranja tempo para, pelo menos, visitar a Igreja de Notre-Dame (sec. XIII) e fazer um tour pela cidadela (sec. XVII).

St Jean marca o início icónico do Caminho Francês e é lá que está instalada uma oficina de peregrinos onde todos vão obter o primeiro carimbo e dali partem, através da mítica porta de Santiago (St Jacques, para os franceses) à conquista dos Pirinéus, por caminhos calcorreados  desde há milénios. É plausível que Iberos, Celtas, Romanos, Suevos, Vandalos, Alanos, Visigodos por ali tenham transposto os Pirinéus.

Foi seguramente por estes trilhos que nos conduzem a Roncesvalles (Valcarlos) que o exército de Carlos Magno terá retirado, derrotado, corrido da fracassada incursão a territórios bascos e mouros. Pese embora a importância que a história reconhece a Carlos Magno para a formação da Europa, as crónicas relevam como marcante a batalha de Roncesvalles, no longínquo ano de 778, na qual terá perecido o lendário Rolando, um dos guerreiros medievais mais icónicos, inspirador de lendas, canções e óperas (https://worldvaticano.wordpress.com/carlos-magno/).

Por esta mesma rota marcharam os poderosos exércitos de Napoleão, provavelmente a toque de caixa e sem botas de caminhada Merrell, com ordens para invadirem Espanha e prosseguirem para Portugal, e por ali regressaram a casa em muito menor número mas carregados com o muito espólio roubado.

São estas pedras carregadas de história, enfim, no piso do caminho, suporte centenário de ponte, ou artisticamente alinhadas num capitel, que agora testemunham a passagem de muitos milhares de pacíficos peregrinos rumo a Compostela.

A região, Navarra, é rica em história, pois. A sua identidade enquanto comunidade foi sendo construída e moldada na confluência de uma matriz de elementos, com expressão, também, no vigor que mantêm algumas tradições (exemplo: a Festa de San Firmin e similares), e, sem pertencer ao “país”, o basco como segunda e oficial língua.

Em Pamplona, capital, são justas duas referências especiais (e nenhuma deles é a Festa de San Firmin). A primeira é que, sobretudo para quem gosta de literatura, não deixa de ser algo emotivo tomar um viño tinto num local conhecido como o rincón de Ernest Hemingway. Terá sido naquele ambiente que ele se inspirou para alguns dos seus escritos para o Nobel da Literatura de 1954.

Deu-se ainda o caso, feliz, de nos ter sido concedido o privilégio de acompanhar a degustação de um tinto de La Rioja, com uma demonstração de cultura local/regional digna de realce. O dia era solarengo, a Plaza del Castillo fervilhava de gente. No coreto, o quarteto de sopros desenvolvia algumas músicas tradicionais, enquanto uma multidão de navarros, séniores, jovens, crianças, acompanhava com danças bascas/navarras numa coreografia razoavelmente sincronizada, algo muito próximo de um flashmob (mil perdões pelo anglicismo). Lindo de se ouvir e ver.

Na mesa ao lado, sentavam-se quatro senhoritas doñas para cima de sexagenárias, tomando um thé. Metemos conversa. Entre outras curiosidades, quisemos saber, com um laivo de provocação, se Pamplona pertencia ao país basco. A resposta foi peremptória e taxativa: No! Claro que no!”. Ainda argumentámos que estávamos a assistir a uma demonstração da cultura basca, e que as placas nas ruas e estradas tinham todas os dizeres em castelhano e basco… “Qué no!” ripostaram convictamente as pamplonenses senhoras. “Ellos lo quieren, y hay muchos bascoparlantes, pero Navarra es Navarra”.

Não menos relevante, foi a sorte que calhou a estes lusos peregrinos em Viana, segunda feliz coincidência, segunda demonstração da vitalidade identitária e  cultural deste povo e desta região de Navarra. Era o primeiro dia das festas de nossa Senhora das Neves que se prolongariam por uma semana, e cujo programa incluíam as famosas largadas de toiros pelas ruas, à semelhança de Pamplona, as mesmas que tanto cativaram Hemingway. 

O cenário tinha algo de surpreendente e, mesmo de espectacular. Todos os habitantes de Viana se apresentavam trajados com a mesma indumentária: calça e camisa brancas e lenço vermelho. Os únicos seres que destoavam eram estes humildes mas curiosos lusos peregrinos. Curiosos e atrevidos, misturaram-se sorrateiramente na multidão que se aglomerava na praça do Ayuntamiento, escutaram atentamente os discursos em basco da Senhora Alcaldeza, registaram em video o foguete que ela apichou para dar início oficial às grandiosas festividades em honra de Nossa Senhora das Neves, acompanharam os "Viva Viana" que a turba gritava em uníssono, e, até se puseram ao despique com os Vianenses de todas as idades, a ver quem apanhava mais caramelos, dos milhares que foram atirados à rebatina para o meio do povo, desde a varanda do autárquico edifício.







Viana justifica uma outra nota com uma bem relevante carga histórica. É na localidade que está sepultado César Bórgia. Tinha esta figura uma particularidade única: era filho de Papa. Sim, o Papa Alexandre VI, 214.º chefe maior da igreja Católica entre 1492 e 1503 era o senhor seu pai. Para além de ser filho de quem era, chegou o rapazinho, ainda jovem, a Cardeal. Aborrecido, decidiu abandonar a carreira eclesiástica para se dedicar à carreira militar, trocando, pois, o encarnado barrete cardinalício pelo cinzento metálico elmo, algo que, presume-se, lhe dava mais satisfação, tendo-se envolvido em múltiplas pelejas até ser morto numa delas em 1507. Rezam as crónicas que ele conviveu com Leonardo da Vinci, e, Maquiavel ter-se-á inspirado nele para escrever a sua obra maior “O Príncipe”. Este César terá sido uma personagem e tanto. E ali estavam os seus restos mortais, na Igreja de Santa Maria em Viana.

 

    Monasterio de Irache

                                       Puente La Reina


    Monastério de Santa Maria La Real de Najera

    Catedral de Burgos

Sem comentários:

Enviar um comentário