sábado, 31 de maio de 2025

CAMINHO FRANCÊS (3) - NOTAS DE REPORTAGEM - II

Projecto (em curso): Caminho Francês, Fase 3.

Início: León

Término: O Cebreiro

Etapas: 7

Partida: 26 de abril de 2025

Chegada: 03 de maio de 2025

Distância total: 160 km

Acumulado Caminho Francês: 640 km

Aníbal Azevedo, Anselmo Cunha, Conceição Pires, Elsa Maia, Fernando Micaelo, Gena Cabaço, Jaime Matos, Joaquim Branco, Manuela Gomes, Nulita Lourenço, Paula Marques, Raul Maia, Teresa Silva.


Notas de reportagem – II

A vingança do pintor



Já aqui se fez referência ao extraordinário património religioso, edificado e iconográfico, existente em Espanha. Nos últimos 9 séculos que levamos de país, a igreja portuguesa nunca foi capaz de construir monumentos em número e tamanho, como a sua congénere espanhola. No seu território, o peregrino está permanentemente a tropeçar, mesmo em pueblos pequenos, com igrejas, catedrais, palácios, arquitetonicamente imponentes e recheados com muitos e valiosos elementos artísticos e iconográficos.

A igreja de Nuestra Señora de Assumptión em Fuentesnuevas, nas imediações de Ponferrada seria mais uma entre muitas que o Caminho oferece. Todavia, quando nos é dado admirar a capela lateral, algo desperta a atenção e a curiosidade do peregrino.

Pintada no teto, apresenta a cena da última ceia. Nada a reportar numa cena relativamente banal e familiar, não fossem dois pormenores que não deixam de surpreender o peregrino. 

O primeiro está na figura sentada imediatamente à direita do Cristo. Conhecemos a teoria e a controvérsia que a mesma suscitou sobre a hipótese de Leonardo da Vinci ter retratado, na sua pintura, uma figura com traços efeminados, precisamente à direita do Cristo e que alguns identificam como Maria Madalena. Ali, o pintor local, presumivelmente adepto dessa teoria, exagerou um pouco nos ditos traços femininos da personagem sentada na dita posição. Um pintor, digamos, maroto.

O segundo pormenor surpreendente está na última figura mais à direita do Cristo, na qual é bem visível uma espécie de aro à volta do olho direito. Um apóstolo com óculos na última ceia é claramente algo desenquadrado historicamente.

As informações recolhidas apontam para a hipótese de que a personagem ali retratada não será nenhum apóstolo comensal mas sim o cura que encomendou o trabalho. 

Aquela capela terá sido palco de uma discussão acesa entre o senhor padre cura e o artista pintor que não terá acabado bem. De um lado, um prelado com mau feitio, conservador e sovina, do outro um artista progressista e senhor do seu nariz e do seu trabalho. Incomodado com os traços femininos do apóstolo à direita do Cristo, o cura terá exigido ao pintor que os alterasse para algo mais masculino. Artista que é artista não aceita este tipo de ingerência no seu trabalho. Perante a recusa, o cura terá sentenciado que não haveria lugar ao pagamento. 

Em retaliação, diz-se, o pintor substituiu um apóstolo pelo cura, colocando-lhe uns óculos para, presume-se, ele apreciar melhor a pintura (e a figura de Maria Madalena).




quarta-feira, 28 de maio de 2025

CAMINHO FRANCÊS (3) - NOTAS DE REPORTAGEM - I - Cozinha de panela e tapas

Projecto (em curso): Caminho Francês, Fase 3.

Início: León

Término: O Cebreiro

Etapas: 7

Partida: 26 de abril de 2025

Chegada: 03 de maio de 2025

Distância total: 160 km

Acumulado Caminho Francês: 640 km

Aníbal Azevedo, Anselmo Cunha, Conceição Pires, Elsa Maia, Fernando Micaelo, Gena Cabaço, Jaime Matos, Joaquim Branco, Manuela Gomes, Nulita Lourenço, Paula Marques, Raul Maia, Teresa Silva.


Notas de reportagem – I

Cozinha de panela e tapas


Os portugueses gostam de ostentar a superior qualidade da sua gastronomia face à de outros países. E têm bastas razões para isso. Na comida, dita de tacho ou de panela, a nossa cozinha é bem capaz de ser melhor que muitas. Todavia, é preciso reconhecer, no que concerne a tapas, os nossos vizinhos na Ibéria não dão qualquer hipótese. É verdade que não se pode esperar comer uma sopa decente em terras castelhanas (exceção para o salmorejo), os acompanhamentos de qualquer prato ficam-se pela ensalada mixta e pela batata frita, mas, se falarmos em tapear, aí, eles são mestres.

Ao final da tarde, é ver as ruas repletas de gente, velhos e novos, damas e valetes, a encherem as esplanadas e bares a pinchar e a tapear, sustentando e justificando a cultura de sair de casa, vir para a rua conviver e disfrutar. A oferta de  pinchos e tapas vai muito para além dos mais conhecidos tortillapatatas bravasjamon ibérico ou os calamares. Há mais, muito mais oferta. Destaque-se aqui a novidade – para nós - do queijo frito. Delicioso.

Mas na região oeste de Castilla y León, uma referência merece ser feita: o cocido maragato. Prato típico da região de Astorga (Maragatería), na verdade, é composto por 3 pratos diferentes, com a particularidade de serem servidos “ao contrário”, ou seja, no primeiro vêm as carnes – enchidos vários, lacão, toucinho, orelha de porco, galinha, etc.; o segundo prato traz uma generosa dose de grão de bico com repolho; o terceiro e último é a sopa (do cozido). Tudo delicioso. A Casa Maragata, em Astorga, não oferece outra opção. Quem não gostar de cocido maragata e preferir bitoque, terá de ir a outro lado.













Ainda em Astorga, há duas outras especialidades locais: o chocolate e as “mantecadas”. Do primeiro não pode ser dada opinião porque não foi degustado (o apagão fechou-nos quase todas as lojas), das segundas, a publicidade tende a ser exagerada: trata-se de uma espécie de madalena, apenas isso, sem elementos excecionais diferenciadores de uma vulgar madalena.


sábado, 10 de maio de 2025

INSTANTÂNEOS - XXVII

 


A função de hospitaleiro é discreta mas, essencial, para o acolhimento que o peregrino espera e precisa, depois de uma jornada que pode ter sido desgastante. Seja em albergue público ou privado, o hospitaleiro tem de estar preparado para tudo e para todo o tipo de peregrinos[1].

Um dia, um estudioso destas áreas haverá de por-se ao caminho e, com tempo e método, arranjará forma de ficar à conversa com os hospitaleiros dos albergues – serão centenas – e deles recolherá histórias, muitas histórias, e depois selecionará as mais interessantes de acordo com o modelo de análise que construir e com elas escreverá uma tese de doutoramento ou, mesmo um livro. Seguramente, colecionará muitas histórias alegres, algumas cómicas, muitas outras tristes, bastas delas de sofrimento.

Quando o estudioso chegar ao albergue Leo em Vila Franca del Bierzo e se puser à conversa com a hospitaleira Maria, ouvirá, seguramente, o episódio em que entra Javier, o peregrino mexicano que no início de maio de 2025 se manteve alguns dias ali hospedado, sem vontade de continuar o caminho, porque, aconteceu-lhe, apaixonou-se por ela. A coisa chegou mesmo ao ponto de lhe propor matrimónio.

Maria é uma moça muito bela, com muitos e bons predicados que tocaram o coração de Javier. Apresenta uma figura esbelta nos seus 30 anos, ostenta sorriso fácil e bonito, transpira simpatia por todos os poros, exibe assertividade no trato, alardeia dinamismo e rapidez nas respostas aos pedidos e problemas que os peregrinos lhe apresentam[2] E, era solteira.

Ele não resistiu a tanto charme e durante alguns dias terá adotado todos os estratagemas de sedução padronizados (nós assistimos à chegada das flores). Malogradamente, para Javier, nenhum surtiu o efeito que ele desesperadamente desejava. Maria tinha outros planos.

Conformado com a sua condição de apaixonado não correspondido, Javier acabou a sair do albergue no mesmo dia que nós. No livro de visitas pudemos ler o que ele lá escreveu à sua amada Maria. A frase mais tocante e emblemática era esta:

“Maria, si tu quisieras te llevaría en mi mochila”.


[1] A propósito, continuamos a confirmar junto dos hospitaleiros que os peregrinos mais difíceis são os espanhóis; os portugueses são, na sua maioria, muito simpáticos, afáveis, comunicativos.

[2] Que o diga Inserme a quem Maria foi lesta a disponibilizar um prato de arroz para sugar a humidade que inutilizara o seu telemóvel.