É impossível não tropeçar com eles, os
asiáticos. Quase todos esguios, rodas baixas, sorridentes, ainda que pouco
dados a grandes conversas.
Consultadas as estatísticas oficiais[1], ficámos
a saber que só no ano de 2024 a oficina do peregrino registou 14.337 peregrinos
provenientes da Coreia do Sul (8174), Taiwan (3866), Japão (1590), China (601)
e Hong Kong (106).
Já foram feitos filmes e documentários sobre o
Caminho, escritos muitos livros, até há gente que se entretém a escrever num
blogue algumas das impressões que o caminho lhe inspira e pequenas histórias que presencia
ou protagoniza. Ainda não há – pelo menos do nosso conhecimento -, mas
seguramente vai aparecer um documentário, um filme, um estudo que seja, sobre o
significativo número de asiáticos que vêm do outro lado do mundo para fazer o
Caminho.
Provavelmente, nesse estudo, será desenvolvida, entre outras, a interessante hipótese ouvida por lá, de que as empresas sul coreanas
valorizam os trabalhadores que atravessam meio mundo e utilizam as suas férias
para caminharem durante um mês no Caminho de Santiago. Parece que,
garantiram-nos, esses trabalhadores verão valorizados os seus curriculum vitae, porque essa sua
decisão indicia alguém com coragem e resiliência, alguém que parte em busca do
aperfeiçoamento pessoal, e as empresas sul coreanas apreciam isso num
trabalhador.
A ser confirmada esta hipótese, estamos
perante uma cultura organizacional muito avançada. E, também provavelmente,
perante uma cultura, agora no sentido mais amplo, que igualmente enquadra
pacificamente o caso de Ji-woo.
Seria rapariga para os quarenta anitos e deu
nas vistas porque estava a fazer o Caminho acompanhada pelo seu cão Shin-chan, um simpático e dócil
Labrador de pelo amarelo dourado. Como é óbvio o cão foi eleito a mascote de
todos os peregrinos, aguentando deles, pacientemente, todas as festas e falinhas doces.
Tínhamos de meter conversa com ela. As condições eram propícias a uma boa charla, pese embora o seu inglês rudimentar e arrevesado com sotaque coreano: tempo fresco, caminho largo, plano, bom piso. De tal modo que Jin-woo acabou a sentir-se à vontade para partilhar alguns pormenores sobre si.
Deixam-se aqui quatro, avisando já que o último é absolutamente extraordinário.
Primeiro, ficou-se a saber que ela e o seu cão
Shin-chan já cumpriam um acumulado de quase 600 quilómetros nos quarenta dias
de Caminho Francês.
O segundo é que era casada e que tinha vindo
fazer o Caminho por decisão própria, apenas com o seu cão, um sonho antigo.
O terceiro é que não precisava de trabalhar
porque o marido tratava disso e com sucesso, porque era muito rico.
O quarto "pormenor" é que - confidenciou a própria - ele lhe enviava dinheiro para
financiar este seu sonho.
Na nossa ocidental cultura, este último
pormenor suscita inevitavelmente interpretações - putativamente machistas - sobre as “verdadeiras”
intenções do marido. Mas uma cultura que majora o valor dos seus elementos porque eles vão quase às antípodas “só” para caminhar, é a mesma que deverá sublimar a genuína
disponibilidade de um marido que financia o sonho da sua amada mulher Ji-woo de
fazer o milenar Caminho de Santiago apenas na companhia do seu cão Shin-chan.