domingo, 29 de junho de 2025

INSTANTÂNEOS - XXVIII


 

É impossível não tropeçar com eles, os asiáticos. Quase todos esguios, rodas baixas, sorridentes, ainda que pouco dados a grandes conversas.

Consultadas as estatísticas oficiais[1], ficámos a saber que só no ano de 2024 a oficina do peregrino registou 14.337 peregrinos provenientes da Coreia do Sul (8174), Taiwan (3866), Japão (1590), China (601) e Hong Kong (106).

Já foram feitos filmes e documentários sobre o Caminho, escritos muitos livros, até há gente que se entretém a escrever num blogue algumas das impressões que o caminho lhe inspira e pequenas histórias que presencia ou protagoniza. Ainda não há – pelo menos do nosso conhecimento -, mas seguramente vai aparecer um documentário, um filme, um estudo que seja, sobre o significativo número de asiáticos que vêm do outro lado do mundo para fazer o Caminho.

Provavelmente, nesse estudo, será desenvolvida, entre outras, a interessante hipótese ouvida por lá, de que as empresas sul coreanas valorizam os trabalhadores que atravessam meio mundo e utilizam as suas férias para caminharem durante um mês no Caminho de Santiago. Parece que, garantiram-nos, esses trabalhadores verão valorizados os seus curriculum vitae, porque essa sua decisão indicia alguém com coragem e resiliência, alguém que parte em busca do aperfeiçoamento pessoal, e as empresas sul coreanas apreciam isso num trabalhador.

A ser confirmada esta hipótese, estamos perante uma cultura organizacional muito avançada. E, também provavelmente, perante uma cultura, agora no sentido mais amplo, que igualmente enquadra pacificamente o caso de Ji-woo.

Seria rapariga para os quarenta anitos e deu nas vistas porque estava a fazer o Caminho acompanhada pelo seu cão Shin-chan, um simpático e dócil Labrador de pelo amarelo dourado. Como é óbvio o cão foi eleito a mascote de todos os peregrinos, aguentando deles, pacientemente, todas as festas e falinhas doces.

Tínhamos de meter conversa com ela. As condições eram propícias a uma boa charla, pese embora o seu inglês rudimentar e arrevesado com sotaque coreano: tempo fresco, caminho largo, plano, bom piso. De tal modo que Jin-woo acabou a sentir-se à vontade para partilhar alguns pormenores sobre si.

Deixam-se aqui quatro, avisando já que o último é absolutamente extraordinário.

Primeiro, ficou-se a saber que ela e o seu cão Shin-chan já cumpriam um acumulado de quase 600 quilómetros nos quarenta dias de Caminho Francês.

O segundo é que era casada e que tinha vindo fazer o Caminho por decisão própria, apenas com o seu cão, um sonho antigo.

O terceiro é que não precisava de trabalhar porque o marido tratava disso e com sucesso, porque era muito rico.

O quarto "pormenor" é que - confidenciou a própria - ele lhe enviava dinheiro para financiar este seu sonho.

Na nossa ocidental cultura, este último pormenor suscita inevitavelmente interpretações - putativamente machistas - sobre as “verdadeiras” intenções do marido. Mas uma cultura que majora o valor dos seus elementos porque eles vão quase às antípodas “só” para caminhar, é a mesma que deverá sublimar a genuína disponibilidade de um marido que financia o sonho da sua amada mulher Ji-woo de fazer o milenar Caminho de Santiago apenas na companhia do seu cão Shin-chan.


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